Países emergentes, como a Turquia, pedem a devolução de relíquias históricas. Elas têm nacionalidade ou pertencem à humanidade?
Em 1886, o governo da Alemanha desmontou e levou para Berlim o altar da cidade de Pérgamon, na Turquia. A construção de mármore, com mais de 1.100 metros quadrados, foi erguida no século II a.C. para representar a batalha entre deuses gregos e gigantes. Parcialmente enterrada, estava em degradação. No acordo assinado pelo governante local de então, o sultão Abdul Hamid II, os ornamentos tornaram-se propriedade alemã. A Alemanha ergueu um museu para recebê-los, em 1901. Por considerá-lo inadequado, inaugurou outro, o Pérgamon, em 1930. É onde o altar está até hoje. Não ficaria muito mais, se dependesse do primeiro-ministro da Turquia, Recep Tayyip Erdogan. Ele lidera uma cruzada para reaver relíquias históricas que considera de propriedade de seu país. Em setembro, transportou na bagagem, na volta de uma viagem aos Estados Unidos, a parte de cima de Hércules fatigado. A escultura sumira da Turquia havia 30 anos. Fora localizada num museu de Boston, em 1990. “Este é um grande passo para a restituição dos artefatos”, disse Erdogan. “Lutaremos da mesma forma pela volta dos outros.”
Aproveitando um período de crescimento expressivo – o PIB turco cresceu 126%, de 2005 a 2011 –, a Turquia segue o roteiro trilhado por Grécia e Egito: aproveitar um momento de prosperidade para reclamar a devolução de relíquias. Crescimento econômico e empenho por reaver peças históricas não ocorrem juntos por acaso. Preservar o patrimônio cultural custa caro. A crise econômica na Europa e nos Estados Unidos, nos últimos três anos, favorece a reclamação de obras. Museus como Louvre, em Paris, Museu Britânico, em Londres, e Metropolitan, em Nova York, são os principais alvos dos pedidos de devolução. Em 2010, o Reino Unido cortou o orçamento de seus museus públicos em 15%, como parte do plano de combate à crise. Na contramão, a emergente Turquia planeja construir um dos maiores museus da Europa até 2023. “O governo turco se esforça para transformar Istambul numa cidade de escala internacional, como Nova York e Londres”, diz David Cuthell, diretor do Instituto de Estudos Turcos da Universidade Colúmbia.
Os pedidos de devolução de obras são parte do projeto de afirmação de poderio nacional da Turquia. O país é herdeiro do Império Turco-Otomano, que dominou parte do Oriente Médio, da África e da Europa entre os séculos XV e XX. “O governo quer exibir sua tradição de poder para tentar reafirmá-lo no presente”, diz o arqueólogo Olivier Henry, pesquisador do Instituto Francês de Estudos Anatolianos em Istambul. Passagem entre Europa e Oriente Médio, a Turquia negociou por anos, sem sucesso, sua entrada na União Europeia. Com a crise na Zona do Euro, a preferência dos turcos, agora, é se afirmar como uma potência regional independente. “Um novo Oriente Médio está para nascer, e seremos os portadores, pioneiros e servos dessa nova realidade”, diz Ahmet Davutoglu, ministro das Relações Exteriores do país.
A negociação da guarda das relíquias será um bom teste para a nova influência política da Turquia. O peso do interlocutor costuma ser decisivo, numa discussão em que ninguém é dono da verdade. Os critérios que determinam a posse de uma relíquia são diversos e, muitas vezes, contraditórios. A Turquia reclama para si artefatos levados embora por invasores. É o caso de um bloco de pedra entalhado, adquirido pelo Museu Britânico em 1927. Ao mesmo tempo, não quer devolver artefatos tomados de outros povos. É o caso de 18 tumbas, com cerca de 3 mil anos, encontradas no que hoje é o Líbano e expostas no Museu de Arqueologia de Istambul. Para complicar, suspeita-se que essas tumbas tenham os restos mortais de Alexandre, o Grande – imperador nascido na atual Macedônia. A quem pertence um tesouro desses?
O Museu Britânico diz que certas obras pertencem à humanidade. Com essa alegação, recusa-se a devolver os mármores do Parthenon (um templo na Acrópole de Atenas), reclamados pela Grécia há 30 anos. “Eles são parte da herança do mundo e transcendem fronteiras políticas”, diz uma placa diante das relíquias. Segundo os ingleses, obras de diferentes culturas devem estar lado a lado, para comparação do público. Sem o trabalho de conservação dos grandes museus da Europa e dos Estados Unidos, boa parte do acervo reclamado hoje por turcos e gregos teria se perdido. O Parthenon era usado como armazém de pólvora quando seus frisos foram removidos pelos ingleses. Também guardada pelo Museu Britânico, a Pedra de Roseta – bloco de granito do século II a.C., fundamental na tradução dos hieróglifos egípcios – era usada como tijolo, numa fortificação otomana, quando foi encontrada em 1799 por Napoleão.
A fim de reaver os mármores do Parthenon, a Grécia gastou e 130 milhões no Museu da Acrópole. Seus corredores exibem espaços vazios, iluminados por holofotes, em protesto. “Os britânicos diziam que, se devolvessem as peças, não teríamos lugar apropriado”, disse o presidente do museu, Dimitrius Pandermalis. “Agora temos.” Os gregos argumentam que a ideia de que as relíquias pertencem à humanidade pode fazer sentido, mas não justifica a reunião das peças na França ou no Reino Unido. Esses países, se comparados a Grécia, Turquia ou Egito, produziram uma parte pequena do acervo mais valioso. Alegar risco à preservação histórica também faz pouco sentido nos dias atuais. A consciência sobre o valor das obras está difundida e, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, o mundo ocidental não vive grandes conflitos militares.
A disputa por relíquias históricas mostra que a luta entre os países continua. Se não em batalhas de pólvora, ao menos em disputas igualmente renhidas, em que as armas são dinheiro e poder. Nessa briga, a Grécia, dona de uma dívida pública equivalente a duas vezes e meia seu PIB, terá dificuldade de ocupar as salas vazias de seu museu. E a Turquia, emergente, tem boas chances de ver mais relíquias voltando na bagagem.
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