Sobre árvores de Natal e outros enfeites
Quando a gente se dá conta, está envolvido no ritual em algum momento criticado. Você sabe por quê?
ISABEL CLEMENTE
Kindle
Até bem pouco tempo, você achava um desperdício gastar dinheiro com enfeites
de Natal. Armazenar um pinheiro de plástico por 11 meses era algo inaceitável para seu modo de vida desprendido.
Espalhar bonecos de neve seria patético, ainda mais considerando o calor de lascar dessa época do ano. Para você, acessórios com a cara do Papai Noel eram absolutamente cafonas. Nem objetos nas cores vermelha e dourado você admitia. Pra quê? Botar guirlanda na porta era uma iniciativa desnecessária. Montar um presépio, algo que não estava definitivamente nos seus planos.
Você no máximo admitia uma estrela estilizada em arame que, esquecida na estante, nem parecia ter sido comprada para o dia 25 de dezembro. Obra de arte vá lá. Ou ainda uma pequena árvore de Natal dobrável, a fim de não ocupar muito espaço no armário no resto do ano.
Mas você teve filhos. E tudo mudou.
Essa coluna é para você.
Passei os dois últimos Natais encaixotando móveis, roupas e brinquedos. Nos mudamos quatro vezes entre os Natais de 2011 e o de 2012. Juro. Tenho testemunhas.
Nos Natais dos cinco anos anteriores a 2011, pegávamos avião para estar com a família no Rio. Enfeitar a casa em Brasília ficava por último na lista de prioridades entre malas para fazer e desfazer. As ruas e as fachadas de Brasília ganham muitas luzes nesta época do ano. Lindo de ver. Saíamos os quatro, eu, meu marido e minhas filhas, só para ver o presépio de luz montado num dos muitos eixos desertos da capital e havia algo de sublime naquilo.
Minha mãe, no entanto, não deixava minha casa passar incólume pelo frenesi da decoração natalina e atropelava meus princípios antidecorativos. Sempre me presenteava com uma guirlanda ou outro enfeite qualquer com a cara do Papai Noel. Eu sorria agradecida pensando “mais um item desnecessário para eu armazenar por 11 meses“, mas pendurava o treco na porta.
Em cada uma das nossas mudanças, fomos nos desfazendo de tudo o que nos parecia acessório. Se algum objeto ficasse esquecido no armário por mais de seis meses caía na categoria do dispensável. A árvore de Natal só sobreviveu porque era pequena e ficou esquecida em alguma caixa de papelão, amassada e desfalcada dos embrulhos que faziam o papel de bolas. Este ano, ao desembrulhá-la, lembrei com nostalgia da minha euforia toda vez que mamãe anunciava seu plano de enfeitar a casa.
Tínhamos um pinheiro falso de galhos duros como gravetos verdes recobertos por um algodão. Já de ir atrás dele no sótão, eu percebia que estávamos entrando numa época especial do ano. O calendário mais divertido estava sendo inaugurado. Tinha o fim das aulas, as festas cheias de gente da família, as férias de verão. O coração palpitava. Faltava pouco para o Papai Noel passar na minha casa.
Mas antes era preciso abrir a caixa de papelão enorme e assustar as traças. Lá dentro encontraríamos os bonecos do presépio enrolados em jornais e muitas bolas quebradas em centenas de cacos tão finos quanto poeira de vidro. Eu recebia ordens expressas para não andar descalça. Montar a árvore era um acontecimento. Tudo o que eu queria era uma chance para pendurar algumas bolas, mesmo correndo risco de deixar uma ou outra se espatifar no chão. Achava engraçado também ficar abrindo a boca e me aproximar da bola pendurada para ver minha imagem distorcida até quase lambê-la. Sem falar no Papai Noel inflável, que éramos obrigados a reparar com esmalte todo Natal. Cada ano aparecia um furo novo. Tenho uma foto do lado dele quando ainda tínhamos o mesmo tamanho. Eu amava aquele boneco. Enquanto esse filme passava na minha cabeça, caiu minha ficha.
Eu fora resgatada.
No domingo seguinte, estávamos - eu, marido e filhas - na porta da loja de departamentos decididos a comprar uma nova árvore grande e linda. Deixamos as meninas escolherem os enfeites. A alegria era geral. Elas queriam um pouco de tudo. Eu me derretia com dois bonecos de neve brincando de gangorra, mas não levei. Meu marido queria comprar dois presentes iluminados. Na fila do caixa, tínhamos uma árvore de Natal de 450 galhos e acessórios suficientes para enfeitar pelo menos três destas. Devolvemos os excessos e pagamos. Também arrumei um presépio.
Em casa, a montagem foi uma grande diversão, com direito a cantoria de músicas natalinas e histórias sobre mais um capítulo de uma família pobre e um menino predestinado que nasceu num estábulo para um dia pregar o amor ao próximo. Surgiram muitas perguntas e teses.
“Se ele ganhou tanto tesouro de três reis magos, deixou de ser pobre?“
“Se o Papai Noel mora no Polo Norte, ele não pode ficar num shopping.“
Eufóricas, as crianças interagiam se ajudando e opinando sobre como a outra estava executando sua parte. Pareciam Tico e Teco, a dupla de esquilos implicantes do desenho animado, num momento de interação cerimoniosa.
“Aqui, ó, este galho ainda está vazio, Carol.“
“Você acha que eu posso botar essa bola aqui, Lelê?“
Brigaram também, lógico. Imagine a disputa para pendurar o último enfeite. Teve hora que eu achei que havia galhos demais para serem abertos. Tanta coisa pra fazer em casa, fim de ano é sempre tão atribulado, mas fui obrigada a parar para olhar bolas reluzentes e enfeites dourados, a improvisar sobre o sentido dos presentes como símbolo de uma generosidade e de amizade que devemos exercitar o ano todo, com direito a metáforas sobre o pisca-pisca.
“Às vezes apaga, tudo fica escuro, mas acende rápido e nos ajuda a ver a beleza da árvore. A vida é cheia desses truques“.
Não sei se elas me entenderam, mas algo estava sendo semeado entre nós: um novo ritual. Eu recuperava a meu modo uma memória da infância sobre dias felizes.
Quando tudo ficou pronto, escureci a sala e acendi as luzes da árvore. As crianças estavam orgulhosas do trabalho concluído e um tanto hipnotizadas pelos galhos iluminados. Fez-se um silêncio obsequioso cheio de olhares de admiração e exclamações.
“Ficou linda!“, disseram.
Deparei com a caixa de papelão da árvore vazia e suspirei. Tralha. Não tenho sótão em casa para guardar tanta bagunça mas darei um jeito. Ano que vem, faremos tudo de novo. Há algo de sublime nisso.
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