quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Kimberley Motley: "As leis islâmicas são boas. Falta usá-las"

Kimberley Motley: "As leis islâmicas são boas. Falta usá-las"

A advogada americana passa nove meses por ano no Afeganistão. Usa as leis do próprio país a fim de defender quem não pode pagar por um representante no Tribunal

ISABEL CLEMENTE 12/2014 
TERRA COM LEI Kimberley em Cabul, no ano passado. Ela aceita doações, mas  não de governos  e empresas (Foto: Lorenzo Tugnoli)
A primeira viagem que a advogada americana Kimberley Motley fez para fora dos Estados Unidos, em 2008, a levou ao Afeganistão. Ela fazia parte de um programa do Departamento de Justiça do governo americano para treinar advogados locais. Depois de visitar prisões onde os condenados estavam fadados a apodrecer sem ter quem os representasse – e ver que o problema era especialmente grave para as mulheres prisioneiras –, Kimberley tomou uma decisão que mudou sua vida. Começou a passar temporadas anuais no Afeganistão. Hoje, aos 39 anos, mãe de três filhos, passa nove meses por ano no Afeganistão. Estuda a lei islâmica e a usa para advogar numa sociedade descrente das leis.

É a única advogada estrangeira em atuação no país, onde viveu momentos de pânico em meio a ataques terroristas. Kimberley é simpática, alta e elegante. Viveu uma etapa curiosa no currículo estrelado: foi eleita, em 2004, a mais bela mulher casada do Estado americano de Wisconsin (ela diz ter entrado no concurso após perder uma aposta). Chegou a disputar o título de mais bela mulher casada dos Estados Unidos e aproveitou para divulgar suas ideias sobre penas alternativas para jovens. Kimberley veio ao Brasil em outubro e deu uma das palestras mais aplaudidas do TEDGlobal, no Rio de Janeiro, evento apoiado por ÉPOCA. Kimberley acaba de assinar um contrato com a rede de TV americana NBC. Sua vida inspirará um seriado.
ÉPOCA – O Afeganistão tem boas leis?
Kimberley Motley –
 Eles têm muitas leis excelentes e princípios sobre o que nunca se deve fazer, como o estupro. O Alcorão afirma que alguém só pode responder a crime de adultério se houver quatro testemunhas oculares. Ninguém leva quatro testemunhas aos tribunais. As pessoas simplesmente não recorrem à Justiça. Não têm advogados constituídos para dizer perante o Tribunal “não é isso o que diz a lei”. Não usar leis já existentes é o problema de muitos lugares, incluindo os Estados Unidos.
ÉPOCA – Qual foi o caso mais complicado que a senhora enfrentou lá?
Kimberley – 
Todos são difíceis. Não há processo fácil. Não que os casos em si sejam complicados – complicado é lutar contra muita ignorância e práticas corrompidas. Tudo é uma batalha: entrar na prisão para ver meus clientes, reunir provas e argumentos, levar a julgamento os algozes de uma tortura. É uma luta eterna. O Tribunal é a parte fácil. Quando chego lá, estou exausta pelo esforço despendido antes.

ÉPOCA – Como a senhora se tornou defensora de uma menina de 12 anos torturada pela família?  
Kimberley – Cheguei a esse caso porque o abrigo de mulheres me telefonou no ano passado. O abrigo é mantido por financiamento internacional. É ótimo. Lá, ela estuda e está segura com outras meninas em situação semelhante. Agora, quer ser advogada quando crescer... (Kimberley fica com a voz embargada pela emoção). Ela foi vendida pelo irmão para um homem de 30 anos por US$ 2 mil. A nova família queria que ela se prostituísse. Ela se recusou. Foi torturada com choques, sofreu maus-tratos de toda a sorte. Trancaram-na num porão, arrancaram suas unhas com alicates, quebraram seu nariz, seus braços e suas pernas. Poderia ficar muito tempo descrevendo os horrores. Uma tragédia. Pense numa menina de 12 anos que se recuse a obedecer a quatro adultos. Foram nove meses nessa situação pavorosa. Ela resistiu a tudo e se manteve firme. É muito forte e nem se dá conta disso. Por isso, amo tanto esse caso. Não é fácil encarar histórias tão tristes, mas é meu dever mostrar a ela como é corajosa. Uma vez, conseguiu escapar, pediu ajuda aos vizinhos, e eles a devolveram ao marido. Tudo piorou. Finalmente, um tio a encontrou. Estava tão frágil que precisou sair da casa de cadeira de rodas. Ela é muito pequena, passou fome. Para piorar, o sogro, a sogra e a cunhada, condenados a 25 anos, ficaram presos por um ano e foram soltos. Pensei: “Só podem estar brincando comigo!”. Voltei à Justiça com uma ação para prendê-los de novo e abri outra ação, para processar o irmão e o marido, que a jogaram nessa situação e não sofreram consequência nenhuma. Foi o primeiro caso do tipo, no Afeganistão, em que a vítima foi representada por um advogado. As leis estão escritas há anos, e ninguém jamais as usou. É incrível. Agora, também processo por indenizações, porque, em lugares como esse, as pessoas não se importam muito com ir presas, mas começam a se preocupar se correrem o risco de perder US$ 10 mil.
ÉPOCA – A senhora trabalha sozinha?
Kimberley – 
Tradutores me ajudam no Afeganistão, e advogados do ramo empresarial trabalham no exterior para mim. Sou a única da empresa (Motley Legal) no Afeganistão. Não quero pôr os demais advogados em risco. Muitos se sentem desconfortáveis lá, têm medo. Já tentei contratar advogados locais para ficar comigo por curtos períodos, no máximo uma semana. Percebi que é difícil para eles me acompanhar.
ÉPOCA – Como a senhora se mantém, atendendo apenas quem não tem recursos para pagar?
Kimberley –
 Eu mesma pago as despesas, nos casos de defesa dos direitos humanos. Não cobro nada, nem eles poderiam pagar. A maior parte de meu trabalho com fim lucrativo é empresarial. Meus outros clientes são empresas, embaixadas e consulados, gente envolvida em processos em cortes internacionais. Eles também me mantêm aprendendo. Já recebi doações indivi­duais, mas não quero receber de governos ou empresas, porque atuo no setor privado. Só quero ser advogada.

ÉPOCA – Houve alguma situação que fez a senhora pensar “Eu não deveria estar aqui”?
Kimberley –
 Foi em março, no Serena Hotel, o único cinco estrelas do país, na capital, Cabul. Um amigo ia para Dubai passar o Ano-Novo afegão. Deixou o quarto vago e me ofereceu o espaço para ficar, porque, onde moro, não tenho água encanada nem eletricidade. O Serena é confortável. Quinze minutos depois de me registrar, houve um tiroteio. Mataram várias pessoas no hotel, e ele ficou fechado por quatro horas. Ninguém entrava nem saía. Estava escondida em meu quarto no 2o andar, enquanto gente morria no térreo. Ouvi os tiros. Vi gente correndo quando abriram fogo no restaurante. Foi muito assustador, como algo que acorda você para a realidade a sua volta. Me senti não só isolada, como vulnerável demais. Quando os atiradores invadiram, os seguranças do hotel fugiram. Não havia ninguém armado lá dentro, exceto os terroristas. Foram horas sem saber o que se passava lá fora. O engraçado é que telefonei para um amigo jornalista, para saber o que acontecia, e ele reagiu sussurrando comigo ao telefone: “Oh, meu Deus, você está aí? Desligue a luz, tranque a porta e se esconda”. Até aquele momento, não sabia que o problema era dentro do hotel mesmo, poderia ser na rua, porque acontece de vez em quando. Quase entrei em pânico. Ele tentava me acalmar. Disse: “Fique calma, não é nada”. Eu respondia: “Não me diga que não é nada! Estou nervosa!”. Muitas das histórias publicadas a respeito só saíram porque eu contava o que se passava aos meus amigos. “Di­ga-me o que você vê”, perguntavam. E eu, histérica, respondia: “Isto não é uma reportagem!”.
"A menina foi vendida e torturada. É o primeiro caso do tipo em que a vítima tem advogado"
ÉPOCA – O que a mantém fiel a uma proposta tão arriscada?
Kimberley –
 Meus clientes. São os melhores clientes do mundo.
ÉPOCA – O que seus filhos acham de seu trabalho?
Kimberley –
 Não conto todos os detalhes, porque é tudo muito triste e deprimente. Eles me apoiam muito. Certa vez, a professora de minha caçula, de 8 anos, contou de forma genérica a ela que eu ajudava uma menina de idade próxima da dela, de 6 anos, contra adultos malvados. A reação dela foi muito fofa, porque veio me perguntar se a menina havia ficado bem, se eu conseguira ajudá-la contra os malvados. Tenho também dois adolescentes, um menino de 13 e uma garota de 17 anos. Atuava no caso de uma mulher estuprada, que engravidou no ataque e teve o bebê na prisão. Ela era obrigada a casar com o estuprador, e obviamente não queria. Fiz um abaixo-assinado on-line para pessoas no mundo todo assinarem e dar publicidade ao caso. Em dois dias, reuni 6 mil nomes, e lá estava a assinatura de minha filha. O que me mantém nessa história são meus clientes e meus filhos, que me encorajam e participam desse sacrifício comigo. Não é fácil não ter a mãe em casa durante tanto tempo.

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