quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

O bem mais precioso dos povos

O bem mais precioso dos povos

A escassez de água é uma das causas ocultas de guerras armadas no Oriente Médio e na África. No futuro, as alterações nos padrões climáticos de outras regiões do mundo podem alimentar novos confrontos

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Barefoot Photographers of Tilonia/Creative Commons

*Este texto faz parte do Especial Água; veja os outros textos que integram este especial no box ao lado.

Nos livros de história, as explicações mais comuns para as guerras são as que apontam para as disputas por riqueza, território, poder ou para as divergências étnicas e religiosas. Essas análises podem ser corretas, mas nem sempre identificam a causa oculta de muitos conflitos, a escassez de água. O crescimento da população mundial e mudanças drásticas no clima tendem a transformar a água em um fator mais determinante para o início de guerras. O caso mais recente é a guerra civil na Síria, que já matou mais de 200 mil pessoas. Entre 2006 e 2011, cerca de 60% do país enfrentou uma prolongada seca, que empurrou de 2 a 3 milhões de sírios para uma situação de pobreza extrema.

No início de 2011 surgiram os primeiros protestos contra o governo de Bashar Assad, que acabaram ganhando corpo e envolvendo diversos grupos armados, entre os quais se destacam os terroristas islâmicos que atualmente estão sendo bombardeados por uma coalizão de países liderada pelos Estados Unidos. "Não é coincidência que o epicentro das primeiras manifestações na Síria tenha sido a cidade rural de Daraa, que foi atingida duramente pela seca e recebeu pouca ajuda do governo Assad", diz o biólogo e cientista político holandês Patrick Huntjens, chefe do programa de Diplomacia da Água do Instituto Hague para Justiça Global.

A percepção de que os recursos hídricos se tornariam um elemento cada vez mais relevante nas disputas levou à criação do termo "guerras de água", ainda nos anos 1990. Há, claro, sempre outros fatores pressionando a paz. As guerras que envolvem exclusivamente a disputa pela água costumam ser mais localizadas e afetam grupos populacionais pequenos. A África está cheia de exemplos. Na região de Darfur, no Sudão, desavenças entre grupos étnicos pela água estão na origem da guerra que teve início em 2003. Em 2012, pastores do Quênia atravessaram a fronteira com Uganda em busca de água e melhores pastagens e com isso se envolveram em lutas com pastores locais.

Alguns cientistas alertam para a possibilidade de que o aquecimento global crie conflitos onde antes reinava a mais absoluta paz. Aproximadamente 2 bilhões de pessoas se encontrarão em situação de escassez total de água em 2025, e dois terços do mundo estarão em áreas onde faltam recursos hídricos.

Um dos principais focos de conflito são os rios transnacionais. Aproximadamente 40% da população mundial é abastecida por eles. Quando esses rios separam duas nações historicamente em disputa, a exploração do recurso pode se tornar uma agravante. É o caso da Índia e do Paquistão, que sempre andaram às turras e que, para desespero dos vizinhos, dispõem de armas nucleares. Em 1960, os dois governos assinaram um tratado para compartilhar as águas do Rio Indus, que serve tanto para gerar energia elétrica quanto para irrigação.

Outro rio problemático é o Jordão, que divide Israel e a Jordânia, hoje amigos. Alguns historiadores consideram a construção de um aqueduto israelense nesse rio um dos vários fatores que levaram à Guerra dos Seis Dias, em 1967. A obra teria enfurecido a Liga Árabe, que respondeu construindo seus próprios canais. Atualmente, os israelenses estocam água para os jordanianos, que não possuem reservatórios próprios.

Até na Europa e nos Estados Unidos a questão da água tem provocado instabilidade interna. No início do mês, mais de 50 mil pessoas protestaram nas ruas de Dublin, na Irlanda, contra o fim da gratuidade da água, previsto para o ano que vem. A decisão tem como objetivo aumentar as receitas para, assim, oferecer melhores serviços. Até agora, a Irlanda é o único integrante da OCDE, organização que reúne os países mais desenvolvidos do mundo, que não cobra pela água. "Dos rios para o mar, a água da Irlanda deve ser gratuita", entoavam os manifestantes.

Em Detroit, nos Estados Unidos, houve protestos contra cortes no fornecimento de água. Na cidade, que perdeu importância econômica com a migração de fábricas de carros, cerca de 8% dos consumidores estavam inadimplentes. Fazendo coro com os manifestantes, um grupo das Nações Unidas visitou a cidade para pressionar contra os cortes, alegando que a água é um direito humano. No mês passado, um juiz negou o pedido para interromper os cortes de água. Se o mundo se tornar um lugar menos pacífico, será porque ficou mais árido.

O MEDITERRÂNEO POTÁVEL

Uma das regiões mais áridas do planeta transformou a desvantagem natural em liderança. Ao longo dos anos, Israel só podia contar com o curto inverno para reabastecer seus reservatórios de água, que supriam apenas metade da demanda. Nos anos de pouca chuva, eram recorrentes as campanhas pedindo aos habitantes que reduzissem o consumo. A necessidade fez com que o país investisse em tecnologia e se tornasse uma referência mundial em processo de dessalinização da água do mar. Desde 2005, o país inaugurou quatro usinas que já atendem a 80% do consumo interno, o que inclui tanto o uso residencial quanto o industrial e o da agricultura. De cada 3 litros bebidos por um israelense, 1 vem do Mar Mediterrâneo. Mesmo em anos de baixa precipitação, como o atual, a disponibilidade de água é suficiente para a população.

A usina de Sorek, a maior de Israel, tem capacidade de tratar 624 milhões de litros por dia. Tubos com mais de 2 metros de diâmetro captam a água do mar e a levam para grandes piscinas, próximo ao litoral. A água passa por duas filtrações com carvão e areia antes de ser submetida à osmose reversa. Nessa etapa, é exercida uma forte pressão para que o líquido atravesse várias membranas e chegue ao outro lado sem sal e outros elementos, que depois são devolvidos ao mar e rapidamente absorvidos. Todo o processo leva em média trinta minutos e é totalmente automatizado. "Israel não tem mais problemas de água porque aqueles que têm poder de decisão incentivaram os processos de dessalinização, enquanto no Brasil eram construídos estádios de futebol", diz o engenheiro ambiental carioca Fredi Lokiec, executivo da IDE Technologies, que mora em Israel.

A empresa é responsável por três das quatro unidades israelenses de dessalinização. A água dessalinizada, porém, é muito cara. Custa, em média, o dobro do que se paga por água potável de outra origem no resto do mundo. Para os 9 milhões de israelenses, o valor compensa. "Quanto alguém pagaria pela última Coca-Cola do deserto?", brinca Lokiec. Israel tornou sem sentido o verso de Samuel Taylor Coleridge sobre um marujo sedento: "Água, água em todo lugar, e nenhuma gota para beber".

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