quarta-feira, 3 de setembro de 2014

OS RIOS INVISÍVEIS DE SÃO PAULO E DO MUNDO

OS RIOS INVISÍVEIS DE SÃO PAULO E DO MUNDO

ASSOCIAÇÃO PROMOVE EXPEDIÇÕES PARA VALORIZAR A REDE ENTERRADA DA CAPITAL PAULISTA; NO EXTERIOR, CURSOS FORAM TRAZIDOS DE VOLTA À SUPERFÍCIE

O rio Cheonggyecheon, de Seul, revitalizado (Foto: Divulgação)
Se você vive em São Paulo ou qualquer outra cidade grande, é provável que, ao andar pelas ruas, esteja pisando em rios soterrados pela ação humana. Só em São Paulo são no mínimo 300 cursos de água (mas podem superar 500), totalizando pelo menos 1,5 mil quilômetros de extensão, segundo a associação Rios e Ruas. Alguns desses rios são famosos, como o Anhangabaú, por ser um nome que permaneceu na cidade, mas outras avenidas importantes, como a Nove de Julho e a 23 de Maio também estão sobre cursos canalizados, que hoje transportam água e esgoto e voltam à tona em tempos de chuva, na forma de enchentes, ou caem em leitos maiores (Pinheiros e Tietê, sobretudo), na forma de esgoto.
São consequências problemáticas da prática milenar de desviar, canalizar e tamponar rios e córregos, já existente no Egito antigo e na Babilônia. Muitos concordam que está mais do que na hora de rever esse estado de coisas, e a Rios e Ruas decidiu passar para a ação – sem fins lucrativos e que também não pretende apresentar soluções fechadas. Apenas levando grupos para expedições por São Paulo, a pé ou de bicicleta, para encontrar nascentes.

É muito mais fácil do que se imagina. Um dos fundadores da associação, o geógrafo Luiz de Campos Jr., há muito tempo afirma que, de qualquer ponto da cidade, basta andar no máximo 200 metros para achar uma nascente. Depois de algumas dezenas de expedições organizadas pela associação, essa convicção ainda não foi desmentida.

A afirmação sobre os 200 metros foi o que aproximou de Campos o urbanista e arquiteto José Bueno, que viria a ser seu parceiro na Rios e Ruas ao ser fundada, em 2010. Ele se animou em comprovar o dito e em conhecer melhor a hidrografia invisível de São Paulo. Ambos vinham de experiências educativas em ambientes fechados que consideravam limitadas e em pouco tempo adotaram as expedições como meios de transmitir conhecimento “pela própria natureza”. “A ideia é promover uma vivência sensorial, que não fique apenas na informação, mas leve a conhecer esses rios de perto”, diz Bueno. “É um modo de perceber esses rios como realidade atual da cidade, e não como assuntos do passado.”

Segundo Campos, os rios nunca morrem – e isso não é licença poética. “Por mais que se rebaixem os lençóis, as águas, mesmo sujas, continuam a correr e manter o curso”, diz. Ou aparecem saindo dos bueiros. As nascentes (que podem ser várias para um mesmo rio) são prova visível dessa resistência. Nas expedições, os participantes percebem no corpo e pelos sentidos os sinais de que estão próximos de uma. A temperatura abaixa e o ar fica mais frio, a vegetação se torna mais verde, há presença de certo tipo de plantas (como a taioba) e trechos de chão encharcados que permanecem assim em qualquer período do ano. Os sinais topográficos são formações em forma de anfiteatro (vales cercados de elevações) ou a existências de ruas em curva, que indicam o desenho original de um córrego.

Uma atividade complementar desses passeios é encontrar pessoas mais velhas que ainda se lembram daquele rio ou córrego quando corriam a céu aberto. Isso não é tão raro. A 23 de Maio era rio até o início dos anos 60, e ainda hoje há pessoas que conheceram um rio Tietê navegável e próprio para nadar dentro dos limites urbanos.
A primeira carta hidrográfica paulistana só ficou pronta em 2012, e um dos resultados pretendidos do trabalho de Costa e Bueno é contribuir com a inclusão de muitos cursos não mapeados e nem nomeados. Um fruto que já está maduro é a exposição itinerante Rios e Ruas, com mapas e fotos. O grande objetivo, segundo Costa, é que “as pessoas comecem a desejar esses rios integrados à cidade e não como um lugar para jogar o esgoto”.

As conversas e debates que ocorrem durante as expedições abordam basicamente duas questões: “como chegamos a esse ponto” e “como reverter”. “Se a cabeça das pessoas não mudar, não adianta limpar os rios”, diz. “Todos falam em despoluir o Tietê e o Pinheiros, mas poucos percebem que isso só é possível se forem despoluídos os afluentes.” Ele é otimista: “A cidade é plástica e pode ter um novo desenho em 10 ou 20 anos.”
Rever a questão dos rios urbanos é uma tendência no mundo todo. Em alguns lugares, grandes cursos de água foram destamponados e voltaram a fazer parte da paisagem e da malha urbana, com recuperação de mananciais e até reurbanização de certas regiões em torno das novas paisagens. A Alemanha tem um plano nacional de revitalização de todos os seus rios, e o Banco Mundial oferece apoio a projetos de saneamento e drenagem urbana.

Há novas tecnologias que vão mudando o cenário como jardins de chuva (canteiros que recebem o escoamento de água e ajudam que a infiltração na terra seja gradual), telhados verdes (camadas de solo e vegetação sobre uma superfície impermeabilizada que absorvem grandes cargas de chuva) e os parques lineares ao longo das margens dos rios.

Conheça algumas iniciativas pelo mundo:
Seul – Com um investimento de US$ 380 milhões, a recuperação do rio Cheonggyecheon – que de início enfrentou muita resistência, até de boa parte da população – é uma referência mundial em urbanismo, pela despoluição das águas e pela construção de parques lineares nas margens para lazer da população. A reforma mudou o mapa da capital da Coreia do Sul – sétima maior do mundo, com mais de 10 milhões de habitantes – e a vida dos moradores para melhor. As obras começaram pela demolição do viaduto que cobria o rio, então totalmente poluído. Começaram as obras de recuperação e, três anos depois, em 2006, parte do canal, de 80 metros de largura, foi aberto. Hoje os parques nas margens medem 8 km de extensão, e houve construção de viadutos e novas linhas de transporte público para chegar a eles.

Yonkers – A quarta cidade do estado de Nova York (e berço do cantor Frank Sinatra) teve um passado intensamente industrial e um rio, o Saw Mill, que em 1925, já um esgoto a céu aberto, foi enterrado numa galeria de concreto e aço. No início deste século, um grupo de moradores se aliou à organização Groundwork Hudson Valley, que trabalha pela saúde do rio Hudson e seus afluentes (incluindo o Saw Mill), e encomendou a estudantes de design projetos preliminares para trazer o rio de volta à superfície. A iniciativa foi ganhando apoio. Um grupo de especialistas em meio ambiente chegou para recuperar e proteger as espécies de peixes locais. Em 2010 começou a construção dos parques nas margens, que contarão com um anfiteatro e instalações para mercados públicos e atividades artísticas. Em 2011, os engenheiros abriram o conduto que protegia o rio em recuperação e o entregaram à população num leito reconstruído.

Toronto – A maior cidade do Canadá tem uma rede intrincada de cursos de água em seu subterrâneo, como São Paulo. Pronto desde 1994, um projeto dos arquitetos Kim Storey e James Brown deve finalmente sair do papel para recuperar o maior dos rios enterrados dessa rede, o Garrison. Mas não em sua forma original, e sim numa série de lagos conectados que coletarão e filtrarão água de chuva que então será reusada para irrigação em vez de engrossar repositórios de esgoto.

Brescia – A cidade do norte da Itália também tem seu desenho praticamente definido por rios hoje soterrados. Um grupo de jovens formado em 2006 e chamado Brescia Underground passou a se dedicar a chamar a atenção para esses cursos por meio de expedições, como a do Rios e Ruas de São Paulo, só que pelas galerias subterrâneas. Um dos resultados concretos dessa iniciativa foi obter apoio de instituições para a instalação, numa rua da cidade, de um chão de vidro que permite ver a água correndo do rio Garza, a poucos metros do ponto em que se junta a outros dois, Bova e Celato. A ideia agora é multiplicar essas vitrines pela cidade, com a ajuda de iluminação adequada para permitir uma boa visão de dia e de noite
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