RIO — Na pequena Sapucaia, de 18,2 mil habitantes, no Centro-Sul fluminense, o gerente de um posto de gasolina morreu vítima da Covid-19, e funcionários do principal mercado local adoeceram, o que pôs todos os trabalhadores do estabelecimento em quarentena. Cortada ao meio pela BR-393 (a antiga Rio-Bahia), e com 37 casos e três óbitos confirmados pela prefeitura, a cidade está na rota de um acelerado avanço do novo coronavírus pelo interior do Rio — um dos argumentos da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) para recomendar o lockdown no estado. Até a noite da última sexta-feira, a doença já tinha chegado a 93,5% (86) dos 92 municípios do Rio. E, desde o último dia 15 de abril, o número oficial de infectados tinha crescido 307% na Região Metropolitana, contra 465% fora dela.
Embora essa interiorização seja um drama nacional, no segundo estado mais rico do país há motivos para o alerta acender mais forte. Como parâmetro, também na sexta-feira, eram 62% dos municípios paulistas afetados, e 25% dos mineiros. Em todo o país, o percentual do Rio só era superado pelo Amapá (100%) e se assemelhava ao de Roraima (93,3%) e ao do Ceará (91,3%). Um processo que, segundo especialistas, precisa ser mitigado não só com medidas rígidas de confinamento, mas também com um planejamento regionalizado da rede de saúde para atender pacientes de lugares que, muitas vezes, não têm UTIs ou sequer hospital.
É o caso de Sapucaia, que corre contra o tempo para montar cinco leitos com respiradores em salas de um posto de saúde. Enquanto não ficam prontos, doentes que necessitam de internação são mandados para cidades da região, como Três Rios.
— Tem sido difícil conseguir as transferências. Há muitos pacientes da Baixada, por exemplo, vindo para os municípios próximos daqui — afirma Marília Gabriela Teixeira, coordenadora de epidemiologia de Sapucaia. — Além disso, é complicado convencer as pessoas sobre o distanciamento social, sobretudo nos distritos mais rurais. A BR-393 é outra preocupação, porque é federal e não podemos fechá-la nem fazer uma barreira sanitária.
Dessa forma, o tráfego pesado de caminhões e carretas segue normal na estrada. No Centro da cidade, ela se transforma numa rua de paralelepípedos, onde trabalham pessoas como o vendedor de frutas ambulante Antônio Luiz Benedito, de 52 anos.
— Acredito que a doença chegou pela BR. Mas continuo trabalhando, munido de máscara e álcool em gel, porque essa é minha fonte de renda — diz ele.
Com as rodovias como um dos vetores iniciais do espalhamento da doença, o fechamento delas (pelo menos as estaduais e intermunicipais) foi cogitado na semana passada no ofício enviado pelo governador Wilson Witzel ao Ministério Público do Rio, no qual ele afirma que o estado elabora uma proposta de lockdown. No entanto, o documento da Fiocruz que recomenda esse isolamento mais duro — em particular na Região Metropolitana — ressalta que, até municípios com menos de 50 casos reportados, possivelmente já registrem transmissão comunitária. Ou seja, não é possível mais localizar a origem da infecção, indicando que o vírus circula entre indivíduos que não viajaram ou tiveram contato com quem veio de fora.
Neste estágio atual do Rio, o epidemiologista Roberto Medronho, da UFRJ, é taxativo: o lockdown é a única saída para evitar um espalhamento ainda maior da Covid-19.
— É a “vacina” que temos disponível — afirma ele. — Para que seja efetiva, deveria ser aplicada em âmbito estadual, principalmente na Região Metropolitana, de onde a doença irradia, com a avaliação da medida em outras áreas — acrescenta ele.

Conexão entre cidades

O também epidemiologista Diego Xavier, do Instituto de Comunicação e Informação em Saúde (Icict/Fiocruz), ressalta que, no Rio, no dia 20 de março, o coronavírus já tinha atingido todas as cidades com mais de 500 mil habitantes. Em 23 de abril, afetava 100% das com mais de 100 mil moradores. E, em 4 de maio, zerava a lista dos municípios com mais de 50 mil pessoas. Hoje, a doença só não foi identificada em seis municípios, o maior deles Rio Claro, na divisa com São Paulo, com 18,5 mil habitantes.
— O coronavírus segue as redes de conexão entre as cidades, irradia das maiores para as menores. Avisamos que seria assim — diz Xavier, um dos responsáveis pela ferramenta MonitoraCovid19, da Fiocruz.
No Rio, segundo ele, um dos erros foi que medidas como o isolamento social não foram adotadas seguindo essa lógica de redes de interações e interdependências entre os municípios:
— As cidades não existem de forma isolada. Mesmo o lockdown não dá para ocorrer com decisões unilaterais. As prefeituras precisam fazer isso de forma conjunta, com coordenação dos governos estadual e federal.
Embora de forma empírica, os moradores reconhecem essa necessidade. Na Região dos Lagos, o guarda-vidas e surfista Marcos Monteiro, de 44 anos, conta que Saquarema fechou as praias depois de municípios do entorno. O resultado não demorou a aparecer.
— Muita gente que não podia surfar em suas cidades veio para cá — conta.
Às vésperas do feriado de 1º de maio, a prefeitura chegou a pedir nas redes sociais que turistas não visitassem a cidade, com 47 casos e quatro mortes pela Covid-19 até sexta-feira.

Descompasso dos dados

A velocidade com que o coronavírus toma o interior, contudo, pode ser ainda maior que a divulgada oficialmente. Ao cruzar dados do boletim do estado da última quarta-feira com os anunciados por 82 municípios até então, levantamento do GLOBO mostrou que, naquele dia, havia ao menos 1.936 casos e 103 óbitos, confirmados pelas prefeituras, que não apareciam nas estatísticas da Secretaria estadual de Saúde (SES).
Ainda não estão nos bancos de dados histórias como a de um aposentado de 60 anos, morador de Miracema, no Noroeste Fluminense, morto no último dia 30. Ou a de um idoso de 86 anos, que tampouco resistiu à doença em Pinheiral, no Médio Paraíba. As duas cidades não apareciam com um caso sequer no boletim do estado.
Já Comendador Levy Gasparian identificou, na semana passada, seu primeiro caso, e ainda era apontada como livre da doença no painel da SES. Dezoito dos casos e um óbito de Sapucaia também não eram computados. E uma das maiores discrepâncias ocorria em Teresópolis, cuja prefeitura informava 310 casos da noite da sexta-feira, mas só 77 reportados pelo estado no mesmo horário.
Esse descompasso pode prejudicar outra ação que especialistas apontam como crucial no cenário em que a doença se espalha: o manejo e o dimensionamento da rede hospitalar para atender os pacientes.
— Três Rios, por exemplo, precisará dar conta da sua população e de outras, como a de Sapucaia — afirma Regina Flauzino, especialista em Saúde Coletiva e Epidemiologia das Doenças Transmissíveis da UFF.
Conselheiro da Associação dos Hospitais do Rio (Aherj), o médico Graccho Alvim Neto sugere, inclusive, parcerias interestaduais:
— Pacientes poderiam ser levados, por exemplo, para Minas, que tem cidades hoje com uma situação mais confortável.
Se não forem tomadas medidas regionalizadas, com a inauguração de hospitais de campanha, Diego Xavier, da Fiocruz, aponta que as consequências podem ser graves:
— Há o risco de ambulâncias dessas pequenas cidades ficarem com os doentes sem ter para onde levar.
Questionada na quinta-feira, a SES não respondeu como planeja organizar o sistema de saúde no interior. Já sobre a defasagem nos números da pandemia, o órgão disse que a notificação de casos e óbitos é de responsabilidade dos municípios e que, se observadas discrepâncias, a Subsecretaria de Vigilância em Saúde entra em contato com a prefeitura.
Já o Palácio Guanabara afirmou que o governador apoiará e colocará a estrutura do estado à disposição, incluindo a Polícia Militar, das prefeituras que decretarem medidas mais rígidas de isolamento, como o lockdown.
Colaborou: Patricia Espinoza