Projetos auxiliam vizinhos a transformar terrenos baldios em hortas orgânicas, criando fontes de trabalho e produzindo alimentos frescos e saudáveis para bairros carentes
Publicado em 03/04/2013, 11:20Da Rede Brasil Atual
São Paulo – Ao volante da caminhonete, Hans Temp aponta terrenos vazios na zona leste de São Paulo. Estão tomados pelo matagal – quando não, se transformaram em depósito de entulho. Com os vidros fechados por causa da chuva, voltamos de uma horta comunitária que a ONG Cidades Sem Fome, idealizada por Hans em 2004, ajuda a manter no bairro de São Mateus. Onde hoje se veem dezenas de canteiros com pés de alface, rúcula, alho poró, milho e muitos outros alimentos, há quatro anos havia muita tranqueira. "Nem sei quantos caminhões foram tirados daqui", lembra Hans.
Apesar do nome e sobrenome germânico, Hans é gaúcho. Estudou administração de empresas no Rio de Janeiro e veio para São Paulo depois de um curso de agroecologia na Alemanha. A experiência no país de seus avós mudou os rumos da sua vida. "Lá existe uma cultura muito forte de plantar coisas em casa. E não é porque não tenham dinheiro pra comprar comida", analisa. "Por causa da guerra, o cara mais milionário cultiva uns pés de tomate por hobby ou flores pra enfeitar a casa." Foi quando Hans teve um estalo: no Brasil há muitos espaços disponíveis dentro das cidades, um monte de gente que precisa trabalhar, ganhar dinheiro e comer – e não fazemos nada.
Quando visitei a sede do Cidades Sem Fome, em janeiro, Hans me levou para conhecer duas hortas que ajuda a manter: uma delas embaixo de linhas de transmissão da AES Eletropaulo, no bairro de São Mateus, e outra, em cima de oleodutos da Petrobras, em Sapopemba. Eles pedem autorização para usar a área, apresentam um projeto aos proprietários, assinam um contrato de comodato e, só quando está tudo devidamente legalizado, começam a trabalhar. Os terrenos que Hans me apontou enquanto rodávamos pela zona leste de São Paulo eram todos da Petrobras.Daí nasceu o projeto, que se propôs a aproveitar terrenos ociosos e transformá-los em terra produtiva. Com equipe reduzida, a ONG Cidades Sem Fome oferece assistência a 21 hortas apenas na capital paulista, todas elas em bairros carentes. Os agricultores são selecionados na própria vizinhança. "Normalmente, é gente com idade mais avançada, com 55 ou 60 anos, que acaba ficando fora do mercado de trabalho por ter pouca qualificação profissional", define Hans. "Eles começam a plantar, têm alimento diversificado para seu autoconsumo e comercializam todo o restante. No final do mês, repartem o dinheiro." Antes, porém, é preciso conseguir a terra. "Usamos espaços que não são aproveitados, mas que têm dono. São terrenos da prefeitura, de igrejas, da CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano) e de empresas públicas."
"Esses dutos existem pelo país inteiro, principalmente no litoral, onde estão as grandes cidades brasileiras", contabiliza. "Daria pra beneficiar milhares de pessoas." É sua utopia. Enquanto não pode concretizá-la, capricha nos espaços que já foram conquistados. Hans me leva até uma das hortas-modelo que lhe enchem de orgulho, coordenada por Genival Morais de Farias. Com 63 anos, seu Genival não está bem. Há pouco tempo foi atropelado por um ônibus e tem o braço esquerdo atravessado por pinos de metal. Os dois dias em que ficou internado, garante, foram os únicos em que não trabalhou na horta.
"Estou aqui todo dia, de domingo a domingo." Mas bastou receber alta para retomar a lida – e nem a tipoia azul que sustenta o braço ferido impede seo Genival de andar pra lá e pra cá, mexer a terra e mostrar sua obra para os visitantes. "Me encho de orgulho", revela, com a desenvoltura de quem já concedeu muitas entrevistas e apareceu mais de uma vez em programas de televisão. "Essa é minha mata. Eu sempre gosto de ter uma mata dentro da horta porque traz muitas coisas boas da vida, as brabuletas, os passarinhos e as amoras pra comer." Mas as flores de seo Genival cumprem mais que uma função poética no terreno. "Os insetos vão nas flores e não vêm nas minhas hortaliças."
A variedade dos produtos cultivados no terreno também transcende a mera boa vontade de oferecer todo tipo de verduras, frutas e legumes para a clientela. "A biodiversidade se encarrega de fazer o controle das pragas", anota Hans. "Mas, ainda assim, quando dá muito pulgão, a gente usa caldo de fumo, cinzas, sempre temos uma solução orgânica." Tudo o que se colhe na horta do seo Genival é cultivado sem adição de agrotóxicos. E os vizinhos adoram. "Aqui você compra tudo verdinho na hora, não é que nem no supermercado", diz um cliente que veio em busca de pés de alface, mas acabou levando também espigas de milho. "O preço é um pouquinho salgado, mas sei que estou comendo uma coisa que não tem veneno."
Consumo local
Para Hans, não basta que a horta seja cultivada em regiões carentes – é importante que os produtos sejam comercializados no próprio bairro. "Não faz muito sentido fazer projeto social, pegar dinheiro público, montar uma horta maravilhosa, produzir uma alface linda e vender pra mulher do embaixador lá em Higienópolis." O diretor da ONG lembra que o projeto tem ainda um viés de segurança alimentar. "A dieta do pessoal aqui está muito baseada em arroz, feijão, farinha, refrigerante e alguma mistura – quando tem. Com a horta, você consegue mudar os hábitos de quem mora no entorno."
Depois de conhecer o trabalho do seu Genival, mais consolidado, pedi a Hans que me levasse a uma horta em estágio inicial. A diferença é gritante, inclusive no entorno. Paramos a caminhonete em frente a uma boca de fumo em Sapopemba e entramos por um portãozinho em meio a olhares desconfiados, mas respeitosos. Hans não se importa: quer apenas tocar o projeto adiante – e nos lugares que realmente precisam, como os rincões da zona leste. Ao contrário da horta-modelo do Cidades Sem Fome, a nova roça que Hans está ajudando a implementar ainda está com a terra avermelhada e cheia de pedras. "Ainda precisa de bastante trabalho aqui."
Isso não quer dizer que já não cresçam repolhos pelos canteiros que foram improvisados no lugar. "Vai ficar bonito igual à do seu Genival." Se for verdade, os agricultores poderão tirar dali entre R$ 600 e R$ 1 mil por mês com a venda de hortaliças, como ocorre lá, além de ter algum alimento saudável e variado para compor as refeições todos os dias. A viabilidade econômica do projeto é uma das cartadas mais fortes de Hans na hora de argumentar com o poder público, com quem, conta, não tem tido uma boa relação. A prefeitura de São Paulo afirma que, paralelamente às ONGs, também presta assistência técnica aos agricultores da zona leste dentro do Programa Municipal de Agricultura Urbana e Periurbana (Proaurp).
"Acreditamos que essas hortas têm grande potencial de abastecer localmente", avalia Tiago Janela, diretor do Departamento de Agricultura e Abastecimento da prefeitura. "Se cada espaço ocioso dentro da cidade conseguir produzir hortaliças, é possível fornecer aos vizinhos e até a feiras na região." Além da assistência prestada pelo Proaurp, a administração municipal mantém uma Casa de Agricultura na região e, em São Mateus, articulou a organização de uma cooperativa, cujo primeiro presidente foi justamente seo Genival. Mas Hans acha pouco. "Precisamos fazer mais modelos como este, deixar bem arrumado, e mostrar aos nossos dirigentes que esse projeto é viável. Assim poderão reproduzi-lo em escala no município todo", propõe. As barrigas agradecem.
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