Adobe para todos
A terra crua, uma das matérias-primas mais antigas e abundantes do mundo, está presente em casas tão sustentáveis quanto elegantes e modernas. Um resgate do passado de olho no futuro do planeta Kátia Stringueto e Keila Bis
Metade da população mundial vive em casas de terra. A grande maioria em regiões de extrema pobreza da África. Mas não só. A técnica aparece em cidades históricas brasileiras, como em casarios de Ouro Preto, MG, em endereços pouco ou nada associados à escassez de recursos, como na Universidade Harvard, nos Estados Unidos, num hotel cinco estrelas em Sydney, em bairros inteiros franceses e residências vanguardistas na Alemanha e na Áustria.
Para a surpresa de alguns frequentadores do restaurante Dalva e Dito, dos chefs Alex Atala e Alain Poletto, a construção de terra está presente ali, em pleno Jardins, bairro nobre da capital paulista. Chamado para idealizar a reforma do espaço, o designer Marcelo Rosenbaum resgatou o para harmonizar com a culinária colonial brasileira assinada pelos estrelados chefs. "Usamos barro socado dentro de sacos de propileno colocados em camadas. Na parede da entrada fizemos um recorte em forma de esfera que mostra exatamente a execução", explica Rosenbaum.
Por simpatia à técnica, gosto estético ou impulsionado por uma preocupação atual - a construção civil é uma das que mais causam impacto ambiental -, o tem sido revisitado. E aos poucos vai criando oportunidade de retirar a poeira de alguns conceitos. "O uso da terra crua é uma importante contribuição para a economia de energia e a redução da poluição no planeta", diz o engenheiro e arquiteto alemão Gernot Minke, diretor do Laboratório de Construções Experimentais da Universidade de Kassel e considerado uma das maiores autoridades no assunto.
São muitas, aliás, as energias economizadas numa construção como essa. Feitos de barro e um pouco de palha para dar liga - às vezes com pitadas de cal ou cimento, usados como estabilizante -, os tijolos de adobe, diferentemente dos cerâmicos, não passam pela etapa da queima em fornos de alta temperatura. Secam à sombra ou ao sol, evitando, com isso, desmatamento - pois não é necessário lenha para alimentar os fornos - e liberação de gás carbônico no ar, resultado da combustão.
A obra limpa não causa impacto nem mesmo com transporte, uma vez que o tijolo pode ser produzido com o solo do local da construção.
Outra qualidade da técnica é sua inércia térmica, ou conforto térmico. "Uma casa feita de terra crua respira e não gera mofo", diz Peter van Lengen, bioarquiteto e coordenador do Tibá, instituto de bioarquitetura localizado em uma fazenda próxima a Nova Friburgo, RJ. O arquiteto Gugu Costa, de São Paulo, coloca na marca do termômetro o prazer que essa característica do adobe traz: "A temperatura média de conforto para o corpo humano é de 22 a 28 graus.
Uma casa de tijolo e telha cerâmica, no verão, amanhece com temperatura de 17 graus em seu interior e à noite pode chegar a 34 graus. Por isso, vai precisar de ar-condicionado - o que representa um gasto energético e financeiro. Já uma parede de terra crua fará com que essa casa, com o mesmo layout, acorde com 22 graus e durma com 28, o que é praticamente a temperatura de conforto do ser humano". A explicação é a composição e a espessura (em geral 25 cm) do bloco de adobe, em média três vezes maior que o cerâmico, que atrasa a passagem do calor.
O benefício para a saúde merece destaque. "O barro funciona como um filtro natural. Ele permite que haja uma absorção de umidade e depois uma evaporação dessa umidade, purificando assim o ar", explica o designer André Soares, um dos fundadores do Ecocentro Ipec - referência em permacultura e bioconstrução na América Latina -, em Pirenópolis, GO.
COMO SURGIU
Derivada da palavra árabe "thobe", que significa barro, o adobe data de mais de 5 mil anos. Encontra-se, ao lado de outras técnicas com terra crua, como a taipa e o pau a pique, espalhado pelos continentes. Da África às Américas, da China ao Oriente Médio e à Europa, há edificações milenares que continuam de pé. As Muralhas da China, um dos mais antigos monumentos arquitetônicos do mundo, são de terra. Não se desfizeram com a chuva. "Existe um ditado que diz: a construção com terra deve ter os mesmos cuidados que temos ao sair na chuva. Um bom par de botas, uma capa e um guarda-chuva. Ou seja, a construção precisa ter uma boa fundação, que eleve a alvenaria do solo, ter um bom revestimento e um telhado com um beiral generoso, evitando assim contato com a umidade e intempéries", explica a arquiteta Jaqueline Vale, que defendeu sua dissertação de mestrado sobre esse tema estudando as casas de barro de Bichinho, distrito no interior de Minas Gerais.
Mais um motivo de preconceito vem da desinformação acerca da presença do inseto barbeiro. "Se malfeitas e malconservadas, tanto uma casa de barro quanto uma de concreto deixam frestas onde o bicho pode se instalar. Não é um problema intrínseco do barro. É mais uma questão de acabamento e higiene", explica Obede Borges Faria, engenheiro civil, mestre em arquitetura, doutor em ciências da engenharia ambiental e professor da Faculdade de Engenharia da USP de Bauru. "Há mansões de adobe e elas não têm o inseto", enfatiza Gugu. "A razão é serem bem vedadas estruturalmente. Além disso, o barbeiro só vai transmitir a doença de Chagas se tiver picado um animal contaminado pelo parasita", contextualiza.
A industrialização na década de 30, as estradas de ferro, que permitiram transportar diferentes materiais construtivos para qualquer lugar, e a avidez por novidades - marca do consumidor moderno - acabaram fazendo o adobe desaparecer onde o desenvolvimento foi mais veloz. "A disputa por cada centímetro de espaço em metrópoles como São Paulo também fez as robustas paredes de 25 a 50 cm de adobe perderem lugar", lembra o arquiteto Paulo Montoro, de São Paulo, defensor da técnica, inclusive como opção de moradias populares.
Opinião compartilhada pelo arquiteto paulista Hélio Dias, que nos anos 80 defendeu sua tese de doutorado no Instituto Grenoble, o principal centro de estudos da arquitetura de terra, na França. O tema, soluções de culturas construtivas para habitações de interesse social, propunha a construção com terra crua como alternativa para a favela. "Sem deslocar as pessoas de seu hábitat, elas poderiam construir com uma matéria-prima abundante e passar a ter uma condição de moradia superior", diz o especialista. "É triste ver que as casas da CDHU em cinco anos começam a apresentar patologias. As portas não funcionam, o reboco cai, surgem rachaduras. E o morador ainda vai demorar 20 anos para quita r sua casa", declara.
Presidente da Associação Brasileira de Ensino de Arquitetura nos anos 90, época em que a construção de terra ganhou mais espaço na base curricular dos universitários, Hélio defende um tijolo de adobe prensado, cujo desempenho é ainda melhor. "O Bloco de Terra Comprimida é o upgrade do adobe. Feito a mão e comprimido com a ajuda de uma prensa simples e barata, continua a ser um trabalho doméstico, contudo permite produção em maior escala", afirma Hélio.
QUANTO VALE
Embora o principal atrativo não seja o econômico, mas sim o ambiental, uma matéria no respeitável jornal inglês de economia Financial Times não só apontou a construção com terra crua como responsável pelas contemporâneo como divulgou uma estimativa do governo escocês em que o impacto de uma construção com terra equivale apenas a 1% do gasto energético utilizado em uma construção de alvenaria convencional.
Vem daí o fato de esse sistema construtivo se tornar uma questão de filosofia de vida, e não de falta de recursos. "Eu morava na Europa e quando voltei ao Brasil quis uma casa saudável. Por isso optei pelo adobe", conta o empresário Antônio Zayek, de Terezópolis de Goiás, a 30 km de Goiânia. Os blocos (5 mil) foram feitos com o solo do próprio lote. "Não sou hippie e contratei arquitetos para ter uma morada elegante. Ela tem um excelente conforto acústico, é muito fresca durante o dia e agradável à noite. Uma vez medi a temperatura externa e a interna, num pico de sol, e a diferença era de 6 graus a mais do lado de fora", diz orgulhoso, acrescentando que o projeto foi financiado pela Caixa Econômica Federal.
Como se vê, a terra é um excelente material. Como o concreto, o ferro e o aço. Tem limites como qualquer um: no caso, não serve para fundações, pontes e tetos. "A sustentabilidade pressupõe que tenhamos várias alternativas, em vez de uma só solução. Do contrário, isso sempre vira, cedo ou tarde, insustentável", diz o arquiteto Gustavo Calazans, de São Paulo. Incansável na busca de soluções, a arquitetura pode fazer a terra crua contracenar com materiais nobres, mudando apenas a proporção. "Em vez de utilizar o cimento como se fosse arroz, eu uso como se fosse sal", explica Gugu.
Só não se pode ignorar que o adobe oferece sua contribuição ao exercício do belo. É uma técnica democrática. E será tanto mais quanto mais bem informados estivermos todos: arquitetos, engenheiros e moradores. Como no tempo em que as pessoas se reuniam em volta da mesa, época que Rosenbaum resgatou no restaurante citado no início desta reportagem, o adobe pode remeter ao passado, mas sem dúvida demonstra um pensar sobre o futuro.
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