domingo, 9 de fevereiro de 2020

Querem passar a mão na massagem aérea.

Agências reguladoras, defesa do consumidor e desenvolvimento econômico

O primeiro ponto em discussão consiste na dúvida que ainda se levanta sobre o enquadramento ou não das agências reguladoras como instituições integrantes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor
Ganhou repercussão na mídia, nos últimos dias, a iniciativa de empresas que atuam no mercado de aviação civil de cobrar pelo transporte de bagagem de mão. A prática, até então inexistente no Brasil, causou espécie nos consumidores em um país em que, até muito recentemente, incluía-se o transporte de bagagem, tanto de mão quanto de porão, no preço do contrato de transporte de pessoa firmado.
A notícia reacendeu a discussão sobre o compromisso das agências reguladoras com a defesa do consumidor e o papel que a ANAC vem desempenhando na regulamentação do setor. De fato, a norma reguladora aplicável, a Resolução 400, de 2016, determina ao transportador uma franquia mínima de dez quilos por bagagem de mão por passageiro, de acordo com as dimensões e a quantidade de peças definidas no contrato de transporte. Considera bagagem de mão aquela transportada na cabine, não especificando em que parte da aeronave, e autoriza ao transportador restringir o peso e o conteúdo da bagagem de mão por motivo de segurança ou de capacidade da aeronave. Por sua vez, autoriza que bagagens que não se enquadrarem nas regras estabelecidas pelo transportador possam ser recusadas ou submetidas a contrato de transporte de carga.
Uma interpretação literal da norma aparentemente autorizaria, portanto, a conduta das empresas de delimitar a utilização do espaço abaixo das poltronas para fins de cumprimento da franquia de dez quilos. Resta saber se a norma editada pela Agência obedece aos comandos constitucionais, sobretudo aquele que inclui a defesa do consumidor como princípio informador da Ordem Econômica.
O tema, no entanto, não é de simples solução.
O primeiro ponto em discussão consiste na dúvida que ainda se levanta sobre o enquadramento ou não das agências reguladoras, esses entes autônomos, independentes e dotados de natureza de autarquia especial, como instituições integrantes do chamado Sistema Nacional de Defesa do Consumidor. Embora ainda não seja conclusão uníssona na doutrina jurídica em geral, é de se reconhecer que parte considerável dos estudiosos do Direito Econômico nega essa condição, por razões que caminham desde a natureza mesma dessas autarquias até suas atribuições expressas, conferidas pelas leis instituidoras, pela lei geral e pela Constituição. Esse entendimento, de forma paulatina, tem alcançado os Tribunais e tende a se consolidar. O ponto, assim, tende a se estabilizar nesse sentido.
Essa situação, entretanto, não afasta a ponderação seguinte, no sentido de que, ainda que não integrem o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, as agências reguladoras deveriam obediência ao princípio constitucional da defesa do consumidor. De fato, entes estatais de intervenção indireta do Estado na economia que são, elas se sujeitam aos princípios informadores da ordem econômica, consagrados no artigo 170 da Constituição, e em cujo rol a defesa do consumidor ocupa espaço inquestionável, juntamente com a propriedade privada, sua função social, a livre concorrência e outros comandos. A resposta para o questionamento é peremptória: sim, as agências devem respeito ao princípio constitucional de defesa do consumidor, sobretudo no exercício de seu poder normativo.
E é precisamente aqui que o tema ganha em complexidade. Especificamente no caso da regulamentação das bagagens, promovida pela Resolução n. 400 da ANAC, o princípio da proteção do consumidor teria sido infringido? A resposta não é óbvia, nem em um nem em outro sentido. É que a “proteção do consumidor”, no caso, pode residir na garantia de transporte de bagagem associada necessariamente ao transporte de pessoas tanto quanto pode residir na garantia de modelos de negócio variados, com preços correspondentes ao pacote oferecido. Fato é que essas duas modalidades de “proteção” tendem a ser excludentes. Qual delas seria a mais legítima, constitucionalmente falando?
Eis o grande desafio da regulação, no Brasil como em todas as jurisdições em que o modelo de Estado regulador foi adotado. Ele pode ser resumido na garantia de que a regulação empreendida pela agência seja efetivamente hábil a propiciar os benefícios pretendidos à sociedade, a custos aceitáveis e conhecidos. No presente momento da evolução regulatória no Brasil, foi de suma importância, a respeito, a edição da nova lei das agências (Lei n. 13.848/2019), que exige a edição prévia de Análise de Impacto Regulatório à adoção e às propostas de alteração de atos normativos de interesse geral dos agentes econômicos, consumidores ou usuários. A expectativa é de generalização de um instrumento utilizado de forma pontual em algumas entidades brasileiras, e capaz de dotar de racionalidade e cientificismo medidas que oneram os agentes do mercado, sejam eles consumidores, usuários ou empresas.
No caso específico do mercado de aviação civil, uma agenda, no entanto, deveria constar da pauta de todas as entidades de proteção do consumidor. Refiro-me à efetiva ampliação da competitividade no mercado, atualmente dependente exclusivamente da plena eficácia da também recente Lei n. 13. 842/2019, que abre o mercado aéreo brasileiro ao capital estrangeiro. Qualquer outra medida supostamente protetiva pode-se revelar altamente prejudicial aos consumidores em um cenário de fechamento de mercado e de barreiras injustificáveis à entrada. Sozinha, a Lei n. 13.842/2019 pode produzir mais benefícios para o setor, os consumidores e a economia nacional do que qualquer outra iniciativa estatal ou norma regulatória já publicada. Acompanhar sua implementação deve se tornar assunto prioritário do Sistema Brasileiro de Defesa do Consumidor.

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