domingo, 3 de agosto de 2014

Muito além de um jardim


Muito além de um jardim

Famoso pelo urbanismo e pelos monumentos de concreto, o Plano Piloto mantém hoje um impressionante patrimônio natural, com mais de 300 espécies de árvore distribuídas em 5 milhões de metros quadrados

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Clara Becker  Veja Brasília -/07/2014
Bento Viana
Asa Norte: no projeto de Lucio Costa, os edifícios deveriam "nascer" de uma floresta

Michael Melo

Brasília é um dos raros exemplos mundiais em que o conceito modernista de cidade-parque foi adotado integralmente. No projeto vencedor do concurso nacional do Plano Piloto, de 1957, Lucio Costa idealizou-a com grande quantidade de terrenos livres e arborizados. Dentro da visão do arquiteto, os edifícios locais deveriam "nascer" de uma clareira na floresta, desenhando a antítese de uma metrópole industrial.

Concebida para trazer aos moradores qualidade de vida, essa imensa área verde produziria sombras, amenizaria o clima seco e a temperatura elevada, purificaria o ar e preencheria os espaços vazios do plano urbanístico. Que o resultado ficou próximo do sonho de um dos fundadores da capital federal, isso todos sabem. Se ainda não tem a fama dos monumentos de concreto, a arquitetura verde de Brasília já obteve destaque internacional pela sua beleza e se transformou num dos principais fatores de fixação das pessoas. Tanto é assim que, hoje, a cidade ostenta a maior média nacional de flora urbana: 120 metros quadrados por habitante. Para se ter ideia da força dessa estatística, a Organização das Nações Unidas (ONU) considera que são adequadamente arborizados os centros com 12 metros quadrados de área verde por morador. São Paulo tem 40, o Rio de Janeiro, com a Floresta da Tijuca, 56,4.

O que boa parte dos brasilienses desconhece diz respeito ao árduo começo do imenso jardim que atualmente reveste 5 milhões de metros quadrados do Plano Piloto. Na década de 60, quando a capital brotava no Planalto Central, centenas de milhares de árvores trazidas do Rio de Janeiro, de São Paulo e de Minas Gerais foram plantadas às pressas. Entre 1970 e 1974, contudo, quase todas pereceram. Só em 1973, houve 50 000 baixas. Por trás do fenômeno estava o fato de as plantas importadas não se adaptarem ao solo ácido nem ao ar seco da região. Naquele momento, o reflexo político da mortandade vegetal foi tão negativo que, no Congresso Nacional, se chegou a propor a volta da capital para o Rio de Janeiro. A base da argumentação era uma só: como as pessoas poderiam viver em uma terra em que nem árvore crescia?

A surpreendente ressurreição do verde teve início com uma grande força-tarefa. Os funcionários do Departamento de Parques e Jardins (DPJ) da Novacap foram convocados para realizar expedições pelos arredores da cidade a fim de coletar informações sobre plantas regionais. Vale lembrar que nos anos 70 ainda não existia bibliografia sobre as espécies do Cerrado e pouco se sabia sobre o segundo maior bioma do Brasil, um dos mais ricos do mundo em diversidade. Foi a partir desse levantamento que teve início a produção de mudas adaptadas ao ecossistema local. Desde então, 75% das espécies plantadas pela Novacap, em média, passaram a ser nativas — acostumadas ao solo e ao clima, elas demandam menos gastos com manutenção. Ipês-amarelos, roxos e brancos, símbolos da cidade, são dessa época.

O engenheiro agrônomo Ozanan Coelho integrou as primeiras expedições e perdeu a conta do número de fazendas que visitou e quantas noites passou acampado. "Sofremos uma pressão política e psicológica muito grande, mas fizemos uma pesquisa séria e profunda. Não podíamos errar de novo", lembra. Durante os quarenta anos de trabalho no DPJ, trinta deles na chefia, Coelho foi responsável pelo plantio de mais de três milhões de mudas. Aos 71 anos, o engenheiro, aposentado desde 2009, é um dos protagonistas da história verde da capital. 
Ozanan Coelho: na década de 70, ele salvou o buriti que dá nome à praça
Mais recentemente, a professora de meio ambiente do Iesb, Roberta Costa e Lima, passou a integrar esse rol. Em sua dissertação de mestrado na Universidade de Brasília (UnB), de 2009, ela contou, uma a uma, 15 200 árvores em 39 quadras do Plano Piloto. E catalogou 162 espécies apenas nas superquadras que percorreu. Se considerarmos o corpo todo do avião, são mais de 300. 
Roberto Castro
A professora Roberta Costa e Lima: ela contou 15 200 árvores no Plano
Na Floresta Negra inteira, motivo de orgulho para os alemães, não há mais que quarenta. Aqui, em todos os meses do ano o brasiliense vê alguma espécie dar flores (veja lista no final da matéria). Agora, na época da seca, é a temporada de selfies ao lado dos ipês. Apesar de a terraplenagem não respeitar a vegetação durante a construção da cidade, algumas árvores pré-Brasília sobreviveram. Em seu estudo, Roberta encontrou no Plano Piloto espécies nativas com mais de 200 anos, a exemplo da sucupira e do pequizeiro (veja alguns exemplos no mapa abaixo).

Clique aqui para ver a imagem abaixo em tamanho grande 
Para quem nunca observou o pau-brasil, que deu nome ao país, a 216 Sul está repleta dele. A professora só não esperava encontrar um bacupari, planta nativa da antiga Conchinchina (atual Vietnã), nem cacaueiros. Com mais de 1 000 exemplares, a mangueira é a espécie mais comum em Brasília, que tem árvores frutíferas em todas as quadras. "Os porteiros da cidade plantaram muitos frutos de sua terra nas adjacências dos blocos", explica Roberta.

Essa interferência de moradores na nossa configuração verde foi e continua sendo grande. Não são poucos os entusiastas ambientais da cidade que plantam mudas a esmo — embora o recomendável seja fazê-lo sob a orientação do DPJ. O ex-senador Maerle Ferreira, por exemplo, já cultivou centenas de ipês no Sudoeste, em frente ao prédio onde mora. Para o poeta Nicolas Behr, que publicou um livro dedicado às árvores locais e comanda o viveiro Pau-Brasília, a cidade se tornou um grande showroom da sua loja. As pessoas veem na rua e querem algo igual. "Os espaços verdes de Brasília têm função estética e psíquica", garante ele.
Roberto Castro
Romulo Ervilha: no viveiro da Novacap, onde 1 milhão de mudas de flores são criadas por mês
Manter os 150 milhões de metros quadrados de área verde no Distrito Federal, contudo, está longe de ser uma tarefa simples. O custo de 80 milhões de reais anuais, 8 milhões deles só com flores, é maior do que o orçamento de pequenos municípios. Hoje, Romulo Ervilha, atual chefe do DPJ, comanda um exército de mil jardineiros, que plantam 100 mil flores por semana. Já as árvores, são 150 mil por ano. Todas as mudas vêm de dois viveiros da Novacap que somam 98 hectares. Também cabe ao DPJ a manutenção dos jardins de residências oficiais como os palácios da Alvorada e do Jaburu e a Granja do Torto. Recentemente, a presidente Dilma pediu a revitalização do seu. Achou que estava chinfrim.

Nesse gerenciamento de vontades, Ervilha se acostumou a solicitar, inclusive, a força policial. "É comum que moradores abracem árvores tentando impedir o corte ou a poda. Alguns já foram presos por agredir jardineiros", conta. O contrário também acontece. Há casos de cidadãos que pedem o corte de árvores por qualquer besteira. Certa vez uma senhora aposentada alegou que a que estava em frente a sua janela atrapalhava a observação de pousos e decolagens de aviões, seu principal passatempo.

Apesar de tantos motivos de comemoração, infelizmente ainda falta uma distribuição igualitária de área verde no DF. O desafio atual é levar a mesma qualidade de vida para as outras regiões administrativas. Da área rural do Cent­ro-Oeste, chega um dado preocupante: 50% do cerrado já foi desmatado para dar lugar a plantações de soja. Mesmo dentro do Plano Piloto, a diversidade tem diminuído. Na Asa Norte, por exemplo, algumas quadras exibem menos árvores porque as garagens ficaram maiores. "As empresas privadas só plantam palmeiras, que são baratas e pegam fácil. É uma pena que elas não se preocupem com a variação", critica o professor de dendrologia da UnB Manoel Cláudio Júnior. Diferentemente de uma floresta, onde o nascimento e a morte de árvores acontecem de forma natural, nas áreas urbanas os governos devem responder pela sucessão delas. E os cidadãos precisam se conscientizar de que são peça fundamental na preservação de um patrimônio erguido com perseverança e tão importante quanto os traços da nossa arquitetura.

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