Cozinhar + reciclar = estimar
As dicas e a sabedoria de dona Francisquinha para não deixar desperdiçar um tiquinho sequer da comida que vai ao prato
Carlos Solano
Cuia Guimarães
"A chuva está caindo na copa do meu chapéu, quando vou para sua casa parece que vou para o céu." É assim que me sinto como hóspede de dona Francisca, minha ex-faxineira rezadeira, e o marido, seu Antônio. Aqui, o dia começa junto com o canto do galo. "Deitar cedo, e cedo erguer, dá saúde e faz crescer." Eu estou na cama, tranquilinho ainda, quando ouço dona Francisca caminhar pela casa orando e abençoando. Na hora do café, ela abraça o pão com as mãos e diz: "Que traga união e paz". Após a faxina, joga pétalas de flores nos quatro cantos da casa com uma boa intenção e deixa por três dias.
Faz isso, faz aquilo, ela insiste que "temos de fazer o melhor, sem esmorecimento e com esclarecimento".
Aí tem coisa... Pensei, enquanto fui ajudá-la a abençoar, digo, a cozinhar. "Como conversa não cozinha o arroz", aprendi: se ele queimar, não jogue fora. O gosto e o cheiro ruins diminuem ao juntarmos uma cebola cortada ao meio. Se o bolo não ficar bem assado, molhe-o com um pouco de leite frio e volte ao forno médio. Requentar o café? Pode, em banho-maria.Dona Francisca não desperdiça nada e, agindo assim, já está em sintonia com uma das grandes campanhas do ano.
Em 2013, o Dia Mundial do Meio Ambiente (5/6) teve como tema "Pense, Coma, Poupe - Diga Não ao Desperdício", pois, apesar de uma em cada sete pessoas do mundo passar fome, um terço da produção de comida é ainda desperdiçado, junto com os recursos naturais utilizados (em nível global, 70% da água potável, 80% dodesmatamento). Se cada um de nós deixa um só grão de arroz no prato, no final, toneladas irão para o lixo. E o que dizer dos legumes e verduras, mais sensíveis?
A salada, Francisca só tempera no prato para não murchar e ser reaproveitada depois. Mas e se a alface e a couve já estiverem murchas? Ressuscite-as na água com suco de limão por uma hora na geladeira. Cenouras velhas? Corte as pontas e coloque em um pote cheio d’água por uma noite. Se os biscoitos amolecerem, leve-os ao forno aquecido. Os tomates se recuperam na água quente salgada (dois minutos), esfriando na geladeira. A parte branca da melancia (energética), Francisca refoga com tempero e serve igual a chuchu. Talos de verduras enriquecem tortas, feijão e sopas. E a comadre ainda faz "palmito de mandioca", para preservar os palmitais, com a casca branca, que é picadinha, aferventada e cozida. "É preciso estimar o mundo, sem esmorecimento", ela diz.
Tá bom, mas e o "esclarecimento"? Francisca não responde e me pede para ajudar no doce. É um tal de trocar a água da fruta, duas, três, quatro águas, e a gente aqui com água na boca. "Não pode ter pressa de tirar o amargor e revelar a doçura", ela ensina. De repente, entendi o "esclarecimento": na convivência de cada dia, "remover pedras amargas e plantar roseiras doces", pensei, brincando com o poema de Cora Coralina. A cada dia, reciclar as relações, reaprender a estimar. E Francisca cantarolando: "A vida é como a rosa, cultivada com ardor, ficará mais formosa se regada com amor".
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