quinta-feira, 18 de julho de 2013

Em busca da cidade ideal

 O que precisa ser feito para transformá-las em espaços sustentáveis, eficientes, criativos e acolhedores                                                                                               por Afonso Capelas Jr.

     

Certo dia, o empresário brasileiro Valério Gomes Neto teve a ideia de erguer uma cidade inteligente. Para concretizar o sonho, em 2000 desapropriou sua fazenda de gado de 250 hectares localizada no município de Palhoça, a 15 quilômetros de Florianópolis, antes que a propriedade fosse engolida pela crescente urbanização da região metropolitana da capital catarinense. Ali, Gomes fundou os pilares de um bairro-cidade modelo. Chamado de Pedra Branca, é inspirado nos conceitos de sustentabilidade: o traçado urbanístico foi planejado com ruas que priorizam pessoas, e não automóveis, e onde estão prédios comerciais equipados com materiais e tecnologia de baixo impacto ambiental. Esses edifícios estão próximos de conjuntos residenciais para diversas classes sociais. Assim, os moradores podem ir ao trabalho caminhando pelas calçadas largas e bem cuidadas ou pedalando pelas ciclovias.
Quando estiver totalmente implantada – o que deve acontecer ainda neste ano –, Pedra Branca terá comércio diversificado, generosas opções de esporte, lazer e cultura, além de espaços públicos com muito verde. São ambientes propícios ao relacionamento e à troca de informações entre habitantes de diferentes idades e níveis sociais. “Pedra Branca tem o conceito de cidade compacta, complexa, conectada e com convivência”, conta o empresário de 58 anos. Uma universidade foi a primeira a instalar-se no bairro-cidade, atraindo jovens estudantes e educadores para a região. “Outras instituições educacionais também estão interessadas em vir. Queremos incentivar um polo de cultura e economia criativa.” Cerca de 8 mil habitantes já vivem no bairro-cidade. “Nos próximos 20 anos, serão 40 mil”, anima-se.
Pedra Branca mostra o caminho em que as grandes cidades brasileiras precisam seguir neste século 21. Mas elas ainda engatinham. Hoje, o grande debate entre os urbanistas é como transformar metrópoles apinhadas de problemas estruturais em cidades sustentáveis e inteligentes. Até porque, ao contrário do planejado bairro-cidade catarinense, é bem mais complicado – e caro – dar jeito a décadas de erros, descasos e falta de planejamento: a triste realidade da maioria esmagadora de nossos centros urbanos.
As soluções viáveis passam por investimento pesado em infraestruturas e tecnologias sustentáveis que impulsionem um crescimento econômico com menos impacto ambiental, o que reduz a pobreza e as emissões de gases responsáveis pelas mudanças climáticas. Nesse sentido, as metrópoles terão de se reinventar em várias frentes: da mobilidade à saúde pública, do urbanismo à segurança, da energia ao saneamento básico, ao meio ambiente e à reciclagem.
A mobilidade é, sem dúvida, um dos problemas mais complicados para a convivência urbana, e precisa ser planejada em conjunto com o chamado Plano Diretor Estratégico do município. “É importante evitar que o território das cidades se espalhe, compactando-as o máximo possível e privilegiando o adensamento nas áreas já construídas e que contenham infraestrutura urbana instalada”, diz Maurício Broinizi, coordenador executivo da Rede Social Brasileira por Cidades Justas e Sustentáveis. Um bom exemplo vem da Espanha, onde Vitoria Gasteiz – eleita Cidade Verde Europeia em 2012 – conseguiu que quase toda a população, de 250 mil habitantes, disponha de grande parte dos serviços básicos essenciais e áreas verdes em um raio de 300 metros. Assim como a francesa Nantes, que acaba de ganhar o mesmo título neste ano.
Outro ponto nevrálgico é o lixo. A crescente produção de resíduos tornou-se um dos maiores desafios contemporâneos. “É um problema complexo porque, além do aspecto ambiental, envolve dimensões culturais, sociais, políticas e econômicas”, diz Francisco Pereira Filho, diretorpresidente do Instituto Aryran de Desenvolvimento Humano e especialista em resíduos sólidos e reciclagem. Para ele, as metrópoles brasileiras podem se tornar inteligentes sob esse aspecto quando, de fato, for implantada a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS).
NG - Inovação e criatividade em uma zona revitalizada: a região conhecida como @22, em Barcelona
Inovação e criatividade em uma zona revitalizada: a região conhecida como @22, em Barcelona, é formada por antigos galpões industriais, que deram lugar a modernas empresas de tecnologia - Foto: Guido Cozzi/Corbis/Latinstock
Transformada em lei em agosto de 2010, a PNRS impõe normas rígidas para coleta seletiva, destinação e reciclagem de resíduos, além de abolição dos lixões a céu aberto, substituídos por aterros sanitários. “Essa lei cria passos importantes. Um dos principais é a implantação da logística reversa, último elo da cadeia de consumo, em que as empresas se responsabilizam pelo destino adequado do descarte de seus produtos.”
Outros mecanismos da PNRS estabelecem que nós, consumidores, somos responsáveis pela separação e pelo envio dos resíduos sólidos à reciclagem. Para isso, o poder público precisa criar e divulgar ecopontos e pontos de entrega voluntária (PEV) desses materiais. Também deve promover a inclusão social dos catadores de rua, regularizar cooperativas de reciclagem e implantar aterros sanitários. Para gerenciar essas ações, os governantes terão de colocar em prática os Planos Municipais de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos (PMGIRS). “A partir de 1o de janeiro de 2014, as cidades que não tiverem os planos fixados verão suas contas reprovadas nos tribunais de conta estaduais ou federal”, diz o especialista em resíduos sólidos.
Pereira adverte que, no geral, uma metrópole inteligente na questão dos resíduos é virtuosa no pragmatismo. “Ela é dotada de sabedoria prática, que escolhe a limpeza e a higiene como virtudes cívicas. Mas de nada vale ter um povo educado em boas práticas ambientais se o poder público não faz sua parte.” O especialista cita Barcelona, na Espanha, como modelo de boa gestão do lixo. “A cidade era conhecida como a mais suja da Europa. Com os investimentos nos Jogos Olímpicos de 1992, foi construída uma espécie de metrô do lixo, um sistema de tubulações subterrâneas por onde os rejeitos são sugados a vácuo e seguem para estações de coleta, que fazem a distribuição entre aterros sanitários e reciclagem”, diz.
Uma metrópole inteligente é também aquela que universaliza os serviços de abastecimento de água e coleta e tratamento de esgoto. Uma “cidade 300%”, como costuma dizer Gesner de Oliveira, ex-presidente da Sabesp, a companhia de saneamento básico de São Paulo. “Ela oferece 100% de fornecimento de água potável, uma rede que atinge 100% dos imóveis e 100% do esgoto tratado”, explica. Trata-se de um desafio hercúleo a quase todos os municípios brasileiros, reconhece. “É preciso superar problemas onde há, por exemplo, muitas favelas, em que a água é roubada em ligações clandestinas – gerando vazamentos e desperdícios –, e ultrapassar dificuldades para implantar redes de esgoto, pois muitas das construções irregulares são em fundos de vale, onde, em geral, estão os coletores-tronco, que conduzem o esgoto por gravidade até as Estações de Tratamento de Efluentes, as ETEs.”
Outro entrave é o investimento a ser feito. “Nos lares mais pobres, não há recursos para implantar a instalação domiciliar. Seria preciso investir, até 2030, mais de 300 bilhões de reais”, revela Oliveira. Para poupar os mananciais, também seria necessário implantar redes específicas para as águas de reúso, que poderiam ser recicladas nas estações de tratamento de efluentes e destinadas a geração de energia, refrigeração de equipamentos e limpeza de espaços públicos.
Cidades 300% já existem mundo afora, mas nenhuma no Brasil. Israel destaca-se por reutilizar 80% de seu esgoto. Cingapura conseguiu deixar a água dos efluentes das ETEs potável. Em algumas metrópoles japonesas, as perdas por vazamentos não passam de 10%, caso único no mundo. Na Alemanha, boa parte dos municípios faz a compostagem do lodo gerado nas ETEs, e o transforma em eletricidade por meio do biogás. “A maioria das cidades dos países desenvolvidos já atingiu a universalização dos serviços. Agora, está adotando sistemas sofisticados de computador para controlar redes de abastecimento. Esses sistemas permitem intervenções como manobras de válvulas e bombas comandadas a distância”, conta Gesner de Oliveira.

Nos próximos anos, a tecnologia vai mesmo comandar as principais ações de infraestrutura nas cidades inteligentes. A começar pela distribuição de energia elétrica. Essas novas redes, conhecidas como smart grid, são capazes de interligar matrizes de energia distintas, caso da hidrelétrica, a solar e a eólica. Em vários lugares, velhos medidores analógicos são substituídos pelos digitais, mais precisos e conectados às empresas de energia, as quais podem saber, em tempo real, o gasto de seus clientes. “Essas redes têm maior eficiência em geração, distribuição e consumo de energia, além de evitar apagões”, analisa Ricardo Kenzo, gerente especialista em soluções para cidades da Siemens. Em São Paulo, a empresa utiliza o smart grid para controlar o Centro de Operação de Água da Sabesp, garantindo com isso a distribuição a 14 milhões de pessoas. No Rio de Janeiro, ela atua no fornecimento e na instalação de um programa de automação responsável por controle remoto de 500 câmeras subterrâneas, colocadas na rede de energia do centro e da zona sul cariocas. Esses olhos eletrônicos monitoram o sistema elétrico para prevenir explosão, incêndio e inundação.
Não é só. “A tecnologia pode contribuir, de forma direta, para a melhoria na qualidade de vida das pessoas nos centros urbanos e também no controle de resíduos, na reutilização da água, nos sistemas de tráfego, no metrô e nos trens, tornando- os mais eficientes, além de atendimento à saúde mais qualificado”, esclarece Kenzo. Nesse sentido, cada vez mais as cidades inteligentes terão como aliado uma espécie de cérebro eletrônico central, pronto a detectar qualquer anomalia nos principais sistemas estruturais, que podem ser controlados remotamente e com precisão cirúrgica. “Em tese, tudo isso é capaz de tornar uma cidade mais eficiente e sustentável – porque há menos desperdício – e democratizar as informações on-line”, reconhece Carlos Leite, estudioso das cidades inteligentes (veja entrevista na página 26). Na Espanha, Santander e uma antiga área industrial revitalizada de Barcelona chamada 22@, além de algumas cidades na Califórnia e na Escandinávia, estão em estágio avançado na implantação desses sistemas. Nova York e, de forma mais tímida, o Rio de Janeiro seguem pelo mesmo caminho.
Some-se a isso a criação, cada vez mais prolífica, de aplicativos para computador e smartphone, pensados para fazer a vida dos habitantes conveniente em menor tempo e com menos dinheiro. Hoje, os principais aplicativos à disposição facilitam a mobilidade nas ruas. Baseados na plataforma do Google Maps, eles ajudam a planejar deslocamentos com o uso de carro ou transporte público, localizam ciclovias e até traçam rotas mais curtas para caminhar ao destino desejado.
“Todas essas comodidades eletrônicas contribuem para a interação e o encontro entre as pessoas – ao contrário do que pregavam os teóricos de anos atrás”, aponta o urbanista Carlos Leite. Só que, diz ele, existe o lado B dessa história: “Há sempre o risco de as cidades inteligentes se transformarem em um imenso big brother, em que milhares de informações públicas estarão em poder de grandes empresas privadas”.
Para o antropólogo Roberto DaMatta, metrópoles inteligentes nunca serão perfeitas, mesmo com todo esse aparato tecnológico. “Qualquer cidade tem uma dinâmica própria que escapa ao controle. E as sociedades são organismos vivos, nunca se completam.” Para ele, o maior entrave ao desenvolvimento dos centros urbanos brasileiros é a carência de feeling de nossos governantes. “Até onde uma metrópole pode crescer, como torná-la mais produtiva e acolhedora? Falta essa percepção ao poder público; não há consciência administrativa no Brasil. Aqui, são impostas leis e decisões que não se enquadram no anseio da população. A minoria – que são os políticos – deveria trabalhar para a maioria. Não o contrário.”
Quem sabe a grande saída às cidades inteligentes e sustentáveis deste país seja mesmo o nosso tradicional “jeitinho”, aquela maneira só nossa de improvisar e usar a criatividade para resolver problemas que parecem insolúveis. “Tenho certeza de que o jeitinho brasileiro – praticado para o bem comum, e não para a malandragem – pode ser o pulo do gato na busca de soluções que o pensamento burguês não consegue propor”, resume DaMatta.

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