domingo, 26 de janeiro de 2014

FUTURO DOS RESÍDUOS :"Deus recicla, o diabo incinera"

FUTURO DOS RESÍDUOS

"Deus recicla, o diabo incinera"

Hoje, o processo de incineração de resíduos sólidos, com aproveitamento energético ou geração de vapor, começa a ser visto como uma alternativa viável na busca por tecnologias corretas para a disposição final do lixo

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Francisco Eduardo Pereira* National Geographic Brasil 
Wikimedia Commons

Por que ainda há tanta dificuldade para colocar em prática a primeira usina de incineração de resíduos sólidos urbanos no Brasil? É simples. No momento, há um conjunto de variáveis ambientais, científicas, tecnológicas, políticas e econômicas que inviabiliza a empreitada.

Da perspectiva ambiental, o histórico da incineração no Brasil relaciona experiências traumáticas. Talvez uma das piores tenha sido a contaminação causada pelo incinerador da Rhodia, em Cubatão (SP), entre as décadas de 1980 e 1990. Na época, a empresa instalou um equipamento para eliminar os resíduos industriais nocivos, mas a fumaça liberada também era perigosa à saúde. Isso porque foram colocados equipamentos obsoletos, sem tratamento eficiente das emissões de gases de dioxinas e furanos – substâncias químicas supertóxicas e prejudiciais à saúde e ao ambiente –, que influenciaram de forma negativa na formação de uma avaliação sobre o tema. A própria Companhia de Tecnologia e Saneamento Ambiental de São Paulo (Cetesb) resistiu por mais de 20 anos à liberação de licenças para implantação das chamadas Usinas de Recuperação Energética (UREs), abastecidas com resíduos sólidos.

Hoje, esse processo, com aproveitamento energético ou geração de vapor, começa a ser visto como uma alternativa viável na busca por tecnologias corretas para a disposição final do lixo. As UREs já existem na Europa e no Japão, onde há mecanismos rigorosos de controle e redução da poluição do ar decorrente da produção dessas usinas. No Brasil, o avanço científico e o foco no aperfeiçoamento tecnológico para tratamento e limpeza dos gases no processo de queima têm feito as restrições ambientais diminuírem bastante.

A mudança significativa no tratamento de gases se deu com a melhoria na queima e na capacidade de limpeza dos filtros. Além disso, houve razoável conhecimento sobre o comportamento desses gases, que, inclusive, influiu na própria elaboração da legislação. Isso porque o que move as agências de proteção ambiental é a segurança de que essas fontes poluidoras sejam controladas com rigor para minimizar possíveis impactos à saúde. Com esses cuidados, por fim, em dezembro de 2012, a Cetesb emitiu a primeira liberação de licença provisória de funcionamento de uma URE, em Barueri (SP) – primeira desse tipo na América Latina. Quando funcionar, terá capacidade para processar até 850 toneladas de lixo por dia, gerando 17 megawatts (MW) de energia, suficiente para abastecer 500 mil habitantes. O problema agora é obter financiamento para viabilizá-la. Alguns empresários buscaram tecnologias no mercado, compraram patentes e iniciaram testes. Só não finalizaram suas intenções devido ao valor final da empreitada.

No caso da URE de Barueri, nas primeiras tratativas com fornecedores de equipamentos, o valor parecia razoável; porém, a avaliação dos riscos do empreendimento – que incluem operação e manutenção – faz com que o investimento chegue a R$ 400 milhões para uma planta que consome até mil toneladas diárias de resíduos sólidos, o que torna o negócio proibitivo. Com a nacionalização dos equipamentos, porém, o custo pode cair para algo entre R$ 260 milhões e R$ 280 milhões.

Há dificuldades também sob a ótica econômica. Lixo e energia são mercados fechados e complexos. Antes, é preciso estruturar um modelo de negócio bom para ambos, que considere o lixo como combustível e a energia como produto. Os detentores de contratos de resíduos sólidos urbanos com os municípios são, em geral, proprietários deaterros e querem continuar com seu negócio. Por outro lado, segundo a lei, só empresas credenciadas pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) podem vender energia no mercado de leilões. Portanto, conciliar os interesses e viabilizar o negócio é um grande desafio comercial. Os diálogos entre as partes seguem adiantados, e é provável que, no início de 2014, esse obstáculo seja eliminado e o negócio esteja configurado.

Mas qual será seu modelo? As receitas obtidas com o serviço de gestão de resíduos sólidos urbanos no Brasil – hoje, de cerca de R$ 70 por tonelada diária – e as vendas de energia elétrica devem tornar o investimento de uma URE viável. Com os preços mais atrativos, a discussão com o poder público sobre isenções fiscais, leilões específicos da energia gerada pela cogeração de queima de lixo com preço que a viabilize (estimado em R$ 200/MW, contra um valor de mercado de R$ 150/MW) fica mais fácil. O preço da energia é taxado pelo mercado, em especial pelos leilões promovidos pela Aneel. A geração de energia para uma usina de mil toneladas/dia de lixo, por exemplo, varia entre 13 MW e 20 MW. Considerando a média de 15 MW e o valor do MW a R$ 200, a URE, com certeza, atrairá empresários do setor de energia.

Mas ainda há outras questões: a necessidade de contratos longos de, no mínimo, 15 anos, e um volume mínimo disponível de 800 toneladas diárias de lixo. A prática atual é de contratos de 60 meses, o que impossibilita a venda de energia, que precisa ter garantias de fornecimento dos resíduos sólidos no tempo do contrato (15 anos) e no volume necessário. Assim, só cidades com 1 milhão ou mais de habitantes poderiam ter as UREs, o que demanda um consórcio de municípios que a prática já demonstrou ser inviável.

Esse conturbado cenário foi, certa vez, muito bem ilustrado em uma conversa sobre o assunto com um promotor de meio ambiente da região de Campinas. Em uma reflexão sobre o futuro dessa prática no país, ele não acredita na viabilidade das UREs. Para ele, enquanto houver áreas disponíveis para aterros sanitários ou controlados, será difícil alguém ter coragem para colocar em prática a primeira usina de cogeração de energia proveniente do lixo, ambientalmente correta e com elevado padrão de qualidade. Além disso, argumenta, a política atual incentiva a reciclagem, não a queima do lixo.

Como os especialistas costumam dizer: “Aqui, Deus recicla e o diabo incinera”. 
*Francisco Eduardo Pereira é filósofo pela Universidade de São Paulo, professor das Faculdades Cantareira, onde foi responsável pela elaboração do projeto de agronegócios e meio ambiente, e especialista em soluções para problemas de resíduos sólidos urbanos. É conselheiro do Planeta Sustentável.

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