terça-feira, 11 de outubro de 2016

Terra das águas


O Brasil dispõe de fartura de água doce, mas o consumo inconsequente e a falta de infraestrutura ameaçam jogar pelo ralo esse presente da natureza   

Em 2009, uma equipe multinacional formada por cientistas da Petrobras, pesquisadores ingleses e holandeses da Universidade de Amsterdã perfurou um poço com 4,5 mil metros de profundidade na foz do rio Amazonas. Eles não estavam à procura de petróleo, mas capitaneavam uma espécie de viagem no tempo. Sua busca era pelo mais primitivo leito do rio, enterrado por milhões de anos de deposição de sedimentos. Mais tarde, a equipe anunciou a descoberta em uma revista especializada: de acordo com as análises dos estratos, o rio mais caudaloso do planeta nasceu há 12 milhões de anos.

Foi esse o tempo necessário para que o Amazonas projetasse em suas margens uma gigantesca floresta tropical. Sua água segue até o Atlântico e, por evaporação, volta a despencar sob a forma de chuvas torrenciais na selva. Um ciclo generoso, expresso em proporções colossais: trajeto de 6 675 quilômetros a partir dos Andes e vazão média diária de mais de 17 trilhões de litros - 15% de toda a água enviada ao mar pelos rios do planeta. É uma espécie de encanamento invisível na atmosfera, que, de forma espantosa, é o mesmo desde os primórdios.
A generosa bacia Amazônica é o exemplo mais contundente de uma nação pródiga em rios, lagos e aquíferos que, juntos, concentram mais de 11% de toda a água doce disponível da Terra. Não há fartura semelhante em outros cantos do globo. Considerando toda essa abundância, cada brasileiro teria à disposição, na teoria, 34 milhões de litros por ano. É uma quantidade fabulosa, 17 vezes maior do que a ONU considera uma média confortável de consumo.
Nas próximas décadas, nas quais o recurso tende a tornar-se escasso em todo o mundo, as questões mais importantes irão orbitar em torno do uso inteligente dessa água. "Mesmo a nossa fartura é aparente, já que os maiores rios estão distantes milhares de quilômetros dos principais aglomerados urbanos", analisa Wanderley da Silva Paganini, superintendente de gestão ambiental da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp). "É preciso entender que se trata de um bem finito. Daí a importância de utilizar o mínimo necessário e não poluir as fontes naturais", completa ele.
Anavilhanas, no Rio Negro, na Amazônia
O consumo consciente, todavia, está longe de ser uma realidade no Brasil. Por dia, o brasileiro utiliza 132 litros de água em banhos, bebidas, cozinha, lavagem de carros, calçadas e pisos, além da rega de jardins e plantações de tamanhos variados. Com isso, quase 30% da água tratada nas cidades escorre pelos vazamentos nas ruas e no subsolo. "Na região metropolitana de São Paulo, no verão deste ano, por exemplo, tivemos picos de consumo de 84 mil litros por segundo, mais de 30% além do normal. Esse tipo de exagero poderia ser evitado sem dificuldade", diz Paganini.
O privilégio da abundância não se aplica a todos no Brasil. A distribuição nacional do recurso, tal qual a de renda, é perversa. Em torno de 80% da água concentra-se na Amazônia, onde vivem apenas 5% dos brasileiros, muitos dos quais diante de um terrível paradoxo: ainda que cercados de rios, os moradores do interior da Região Norte reconhecem na água potável um artigo de luxo. "Hoje, 19 milhões de pessoas, 10% da população, não têm acesso à água tratada. É muita gente", aponta Paganini. Em função disso e da pouca noção de cuidados básicos com higiene, o líquido que deveria matar a sede e garantir a saúde transmite doenças.
Já no semiárido nordestino, 18 milhões de pessoas sobrevivem em uma zona tomada por um dos maiores índices de evaporação do mundo. Ao longo do ano, ocorrem períodos de chuva, mas o solo e o clima árido não favorecem a formação de fontes ou rios volumosos. A pouca água acumulada nos poços rasos não recebe os cuidados básicos e acaba por se tornar, também, propagadora de enfermidades.
As dissonâncias naturais na geografia dos recursos hídricos do Brasil foram, em muitos aspectos, acentuadas por processos históricos. A mecanização da agricultura e a industrialização acelerada fizeram com que a maioria dos habitantes deixasse o campo, criando problemas relacionados à urbanização e, com isso, afetando as torrentes. O trecho paulistano do rio Tietê é a vítima mais evidente desse fenômeno: o corpo meândrico foi transformado em um canal reto; as várzeas inundáveis, tomadas de construções e asfalto impermeável; e o leito, convertido em esgoto. O resultado caótico desse desrespeito ao curso d’água são as trágicas enchentes exibidas pelos noticiários a cada verão.
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