sábado, 21 de dezembro de 2013

Lévy: “O que acontece aqui não é por democracia, mas contra a corrupção"

Lévy: “O que acontece aqui não é por democracia, mas contra a corrupção"

O filósofo francês diz que os protestos foram importantes para a evolução da sociedade brasileira e que os governantes ainda não ouviram a voz das ruas

AMANDA POLATO



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O filósofo Pierre Lévy (Foto: Reprodução/ Twitter)
O filósofo Pierre Lévy já falava sobre inteligência coletiva antes mesmo da popularização da internet e da criação de comunidades virtuais e projetos como a Wikipédia. Em 2002, oito anos antes da Primavera Árabe, foi um dos primeiros a publicar um livro sobre ciberdemocracia, em que dizia que movimentos poderiam organizar-se pela web e desafiar o sistema político. A recente onda de manifestações no Brasil empolgou o filósofo, que participou delas pela internet, divulgando informações e palavras de ordem. “Os protestos foram muito positivos, houve uma tomada de consciência”, afirmou a ÉPOCA na semana passada, após participar do I Congresso Internacional de Net-Ativismo da Universidade de São Paulo (USP).
Para Lévy, a multiplicidade de expressões na internet enriquece a política e permite a formação de uma esfera pública mundial. “O monopólio das expressões públicas não existe mais. Todo mundo está se expressando pelas redes sociais. Essa é a verdadeira liberdade de expressão.” Mesmo com a ampla divulgação de textos e vídeos feitos por pessoas não ligadas aos grandes grupos de mídia, o filósofo não crê que os meios tradicionais de comunicação desaparecerão. “As coisas se tornam mais complexas.”
Nascido na Tunísia em 1956 e atualmente professor da Universidade de Ottawa, no Canadá, Lévy continua a pesquisar o poder da inteligência coletiva. Hoje, um dos seus interesses é a customização do processamento de dados na internet. Governos, empresas e diferentes grupos precisarão, segundo ele, ser capazes de organizar grandes massas de dados (o chamado big data) para se orientar na realidade. Nas últimas eleições americanas, por exemplo, Barack Obama contava com uma equipe de engenheiros para levantar, filtrar e classificar informações sobre seus eleitores e, então, conduzir sua campanha. Lévy diz que, no futuro, todos os jogos de poder se darão pelo mundo dos softwares.
Confira a seguir os principais trechos da entrevista de Pierre Lévy a ÉPOCA:
ÉPOCA – Qual é a sua avaliação sobre os protestos no Brasil?Pierre Lévy – Eu nasci na Tunísia, depois me tornei francês e depois me tornei canadense. Eu sou um pouco tunisiano, um pouco francês, um pouco canadense e também um pouco brasileiro, porque eu venho aqui há 25 anos. Venho para cá a cada três anos e tenho muitos amigos aqui. Quando eu soube dos protestos no Brasil, que foram organizados pelas mídias sociais, eu entrei no Twitter e participei. Eu retuitei em português alguns temas dos protestos. Eu dei algumas entrevistas sobre isso, mas não muitas. Há muitos anos, a internet é uma nova ferramenta de expressão da população, uma nova forma de coordenar movimentos sociais. Eu achei ótimo que isso estava ocorrendo no Brasil, que também é meu país.
ÉPOCA – A violência dos protestos prejudica seus objetivos principais?Lévy – De maneira geral, eu sou contra a violência. Jogar coquetéis molotov nas ruas não é algo bom. E também sou contra a violência da polícia. Existem algumas formas de mudar um governo: pode ser pela violência, pelos meios constitucionais e pela atuação de grupos políticos e pela liberdade de expressão. Vocês não estão combatendo a democracia, já estão nela. É bem diferente do que acontece nos países árabes. O que acontece aqui no Brasil não é pela democracia, e sim contra a corrupção, para que o país tenha melhores equipamentos e infraestrutura, melhores sistemas de saúde e de educação. Vocês já têm democracia, mas o que está bom para umas pessoas não está para outras.
ÉPOCA – Grandes mobilizações têm ocorrido sem a definição de líderes e sem uma lista unificada de demandas. É possível ter mudanças sociais profundas dessa maneira?Lévy – No caso do Brasil, os protestos foram muito positivos, houve uma tomada de consciência. E havia uma agenda. Eu discordo de que não há listas de reivindicações. Houve protestos contra o aumento de tarifas do transporte público, por mais transparência dos governos e melhores serviços. Tem sido uma experiência muito importante e de evolução da sociedade brasileira.
ÉPOCA – Os governantes ouviram as vozes da população nas ruas?Lévy – Uma das principais reivindicações dos protestos foi o fim da corrupção. Eles ouviram? A corrupção acabou? Não, eles não ouviram.
ÉPOCA – Com o amplo uso da internet e das redes sociais para publicar informações, os meios de comunicação de massa estão ameaçados?Lévy – Eu odeio a mídia tradicional [risos]. A questão do monopólio das expressões públicas não existe mais. Todo mundo está se expressando pelas redes sociais. Essa é a verdadeira liberdade de expressão.
ÉPOCA – Os grandes grupos tendem a desparecer?Lévy – Todo o sistema se transformará e continuará a evoluir. Não existe isso de algo desaparecer e ser substituído por outra coisa completamente nova. Sempre surgem novas camadas, as coisas se tornam mais complexas. Se você tem Twitter, pode ver que as pessoas estão sempre publicando links de meios de comunicação tradicionais. E esses meios têm blogs e também têm perfis nas redes sociais. A mídia tradicional imita a redes sociais. E as redes sociais citam os meios tradicionais. Dessa forma, todo o sistema se torna mais complexo, como sempre.
ÉPOCA – A profissão de jornalista também está ameaçada?Lévy – No século XVIII, o trabalho de milhares de pessoas era, unicamente, carregar água. Então, porque eu quero proteger o trabalho dessas pessoas, vou deixar de instalar encanamentos nas casas? No futuro, iremos precisar de pessoas que são muito competentes em comunicação em geral. Nós sempre vamos precisar delas.

Livro Vermelho: plantas do Brasil ameaçadas de extinção

FLORA EM PERIGO

Livro Vermelho: plantas do Brasil ameaçadas de extinção

Mais de duas mil espécies da flora brasileira correm o risco de desaparecer para sempre. As plantas estão listadas no “Livro Vermelho da Flora do Brasil”, publicação do Centro Nacional de Conservação da Flora que busca incentivar medidas de proteção às espécies

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zanastardust/Creative Commons

Estima-se que o Brasil abrigue mais de 10% de toda a flora do planeta, com quase 44 mil espécies catalogadas e milhares ainda desconhecidas pela ciência, mas o país precisa melhorar a forma como cuida de toda essa riqueza natural. 


Levantamento feito pelo Centro Nacional de Conservação da Flora (CNCFlora), vinculado ao Jardim Botânico do Rio de Janeiro, analisou 4.617 espécies de plantas que vivem no país e concluiu que 2.118 - ou seja, mais de 45% - estão ameaçadas de extinção, nas categorias Vulnerável, Em Perigo e Criticamente em Perigo, segundo os critérios da União Internacional para Conservação da Natureza (IUCN)



Os resultados do estudo científico foram publicados no Livro Vermelho da Flora do Brasil, lançado nesta terça-feira (03/12) no Rio de Janeiro. Segundo a publicação, a maioria das espécies avaliadas que estão ameaçadas encontra-se nas regiões sul e sudeste do Brasil, nos biomas Mata Atlântica e Cerrado. O grupo das pteridófitas - como samambaias, avencas e xaxins - é o que possui o maior número de plantas que correm o risco de desaparecer para sempre. 


A intenção da iniciativa é oferecer à sociedade e ao poder público informações de qualidade a respeito da atual condição da flora brasileira para que medidas efetivas de conservação sejam adotadas. Entre elas, os cientistas envolvidos no estudo sugerem a criação de unidades de conservação, já que mais de 87% das espécies de plantas listadas como ameaçadas encontram-se em situação vulnerável por conta da perda de hábitat e da degradação. 



"O Livro Vermelho terá grande utilidade para municiar tomadores de decisão com informações científicas que possam nortear o estabelecimento de prioridades de ação para a conservação de plantas, ou mesmo para direcionar pesquisas científicas que possam preencher lacunas de conhecimento sobre determinados grupos taxonômicos", acredita Gustavo Martinelli, coordenador do CNCFlora.



Thom Mayne: "Cidades já são como países"

Thom Mayne: "Cidades já são como países"

O arquiteto rebelde mais premiado do mundo diz que mudar radicalmente o projeto de edifícios é uma questão urgente de sobrevivência urbana

GUILHERME EVELIN


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GAROTO PROBLEMA Thom Mayne em São Paulo. “Honestamente, sou meio tedioso”,  diz ele (Foto: Letícia Moreira/ÉPOCA)
Metrópoles como São Paulo e Rio de Janeiro, no Brasil, ou San Francisco, nos Estados Unidos, reúnem mais habitantes que a Holanda – um país. Para Thom Mayne, arquiteto americano ganhador do Prêmio Pritzker de 2005, o crescimento levou essas cidades ao ponto de exaustão. “Devemos repensar as cidades, por uma questão de sobrevivência biológica”, diz. Mayne defende uma visão da arquitetura menos ligada à estética dos edifícios e mais voltada à integração urbana. Uma proposta, afirma, próxima ao trabalho de Oscar Niemeyer ao conceber Brasília, nos anos 1950.

ÉPOCA – Qual a diferença entre fazer um projeto para o Estado e para uma empresa privada?
Thom Mayne –
 O Estado é um cliente complexo, de várias cabeças. Um projeto público é mais pé no chão, do ponto de vista de orçamento, e mais coletivo, do ponto de vista do uso. Deve ter mais áreas abertas, praças externas ou saguões internos. Numa empresa privada, você trabalha com um contratante só. Há uma ideia central mais clara.
ÉPOCA – O arquiteto Oscar Niemeyer (1907-2012) recebeu uma série de encomendas do setor público brasileiro. Seus colegas de trabalho o chamavam de arquiteto do Estado, uma forma de desmerecer seu trabalho. É correto favorecer um arquiteto?
Mayne – 
Esse é um assunto realmente complexo. Niemeyer conquistou uma posição singular na arquitetura brasileira e alguns, parece, o desafiaram. Ele era um arquiteto muito, muito bom. Oito anos atrás, fui barrado num aeroporto de Los Angeles, a caminho do Brasil. Pediram meu visto, e eu não tinha. Então, disse: “Preciso viajar, tenho uma reunião com Oscar Niemeyer”. A funcionária da empresa aérea respondeu: “Oh, ele é uma das pessoas mais conhecidas do país. É Pelé e Niemeyer”. Quantos países têm, entre suas pessoas mais conhecidas, um arquiteto? Ele era escolhido para os grandes projetos, mas foi um arquiteto singular. A singularidade não era um problema dele. Talvez, dos outros arquitetos.
ÉPOCA – O que o senhor acha do projeto de Brasília, desenvolvido nos anos 1950 por Lúcio Costa e Niemeyer?
Mayne –
 Brasília é o mais ambicioso e inovador exemplo de planejamento urbano do século XX. Aqui, no Brasil, vocês puderam repensar inteiramente uma cidade. Isso deveria ser feito mais vezes. O desafio que temos no século XXI é menos na cidade inteira e mais em prédios individuais. Mas a proposta de Niemeyer é muito atual. Como arquiteto, ele mudou comportamentos sociais.
ÉPOCA – Usar a arquitetura para mudar comportamentos sociais, como fez Niemeyer, ainda é uma ideia atual?
Mayne –
 Os problemas atuais são evidentes. O crescimento da urbanização é um problema do fim do século XX. E tem a ver com mudanças radicais na força de trabalho, nas condições socioculturais e na transição de uma natureza agrária rumo a indústrias e serviços. Com isso, vieram grandes agregações urbanas jamais experimentadas. Estamos trabalhando em nível governamental para encarar isso? Estudamos astrofísica, estudamos matéria escura, a natureza do mundo, a fim de entender o Universo, mas não há ninguém realmente olhando para esse problema dos grandes aglomerados urbanos.
" Repensar as cidades deveria
envolver a todos, como a viagem
à Lua, nos anos 1960"
ÉPOCA – Nem nos Estados Unidos?
Mayne –
 Os políticos de meu país estão interessados em contradições ridículas, como direito ao aborto, quando os problemas de hoje são questões reais de sobrevivência. A população urbana triplicou em 40 ou 50 anos. Não temos uma cultura ecológica capaz de sustentar isso. O adensamento crescente está limitado não apenas por recursos naturais, mas por infraestrutura, instituições sociais e estratégias políticas. Em junho, a população no Brasil protestou. Estão todos perto do ponto de exaustão. No ano passado, andei por São Paulo por três dias. Nunca vi o trânsito da cidade tão horrível. Não dá mais para dirigir. Se você olha um modelo – como cientistas fazem ao estudar microbiologia ou astrofísica –, o modelo cresce mais e mais, até um ponto em que quebra.
ÉPOCA – Como tal crescimento das cidades muda a natureza da discussão?
Mayne –
 Cidades já são como países. A área metropolitana de Los Angeles reúne por dia 7,9 milhões de pessoas. É igual à Holanda. Equivale a duas Suíças. Se você entender aquela cidade como um país, começa a entender a complexidade de hoje. O prefeito de Los Angeles equivale ao líder de Estado da Holanda. Por sinal, Los Angeles é mais complicada que a Holanda. Tem uma base econômica e social muito mais diversa. Então adicionar mais uma pista às autoestradas não resolverá o problema. Os deslocamentos de carro em Los Angeles, por dia, somam uma distância equivalente a 6 mil voltas ao mundo. São viagens pequenas, individualmente, mas quando olhamos para o conjunto... Um arquiteto é parte desse problema, pois transportes e edifícios consomem 70% da energia da cidade. Edifícios, sozinhos, consomem 40%.
ÉPOCA – Quando o senhor ganhou o Prêmio Pritzker, em 2005, disseram que o prêmio havia ido para...
Mayne –
 ...o bad boy (garoto problema).
ÉPOCA – Disseram que o senhor era um filho dos anos 1960 e tinha permanente desejo por mudança.
Mayne –
 A história de bad boy começou anos atrás. A repercussão da conquista do Pritzker ajudou a aumentá-la. Fizeram centenas de textos a meu respeito, mas só um jornalista ligou para mim. Ele disse: “Todo mundo diz que você é um bad boy. E você vem fazendo escolas, tribunais e edifícios do governo... isso não bate. Você não deve ser tão difícil, para trabalhar com toda essa gente”. Honestamente, sou meio tedioso. Sou completamente devotado a meu trabalho e a minha família. Sou um cara reservado. Tenho 69 anos. Na minha idade, vejo essa história de bad boy como uma piada. Mas é preciso ter assunto para escrever e, infelizmente, não há muita gente interessada em ideias de arquitetura. Apareci num momento em que os Estados Unidos eram um país muito rico e conservador. Os anos 1960 foram feitos para mim. O centro artístico do mundo estava em Los Angeles, e eu morava lá. Foi um momento fantástico. Havia sexo, drogas e rock’n’roll, que são ótimos, mas não é o que importa. Houve uma revolução social. As conquistas sociais dos negros, a campanha contra a Guerra do Vietnã... Os problemas que enfrentamos hoje são desafios ainda maiores.
ÉPOCA – Como o desejo de mudança aparece em seu trabalho?
Mayne – 
Ao projetar o San Francisco Federal Building, um prédio de escritórios do governo federal, tiramos o sistema de ar-condicionado. Abrir o prédio à circulação do ar ambiente foi complicado, por questões de segurança. Mas a economia de energia é suficiente para alimentar 600 lares. Seiscentos lares! Isso pode ser a parte mais importante do projeto. Um arquiteto deveria dar prioridade ao visual do prédio? Não, não, não, não. A decoração é uma escolha pessoal, não traz consequência. Nos importamos com o que o prédio acrescenta à cidade no aspecto social, econômico, cultural, ecológico, urbanístico, de infraestrutura... Nosso edifício não tem estacionamento. Você pode ir de metrô. Estamos desencorajando o carro. As pessoas podem ir até lá dirigindo, mas estacionar é problema delas, não nosso. Voltamos nossas atenções a uma creche para os filhos dos trabalhadores, em vez de ter um saguão bonito ornado com esculturas. Dissemos: “Vamos fazer um lobby com um lugar onde os pais possam descer e ver seus filhos o dia todo, porque 55% da força de trabalho é de mulheres, e elas sentem falta de ver seus filhos. Podemos ter uma creche nesse prédio grande, onde trabalham 4 mil pessoas”.
ÉPOCA – Qual o papel do arquiteto em cidades do tamanho de países, como Los Angeles?
Mayne – 
O urbanismo caminha para o lado da política. Da liderança de ideias. Arquitetura é design, mas é também organizar grupos de pessoas. Creio que a discussão a respeito de Niemeyer sempre se deu no nível estético. As pessoas aprovam ou reprovam seu trabalho esteticamente. É um erro. Deveriam discutir mais a proposta. Deveriam questionar o trabalho dele pelo aspecto do desempenho, pelo aspecto da função. Queira o arquiteto ou não, não existe mais edifício sozinho, indiferente aos outros. Eles são conectados a seu redor. Repensar as cidades é uma ideia que tem de contagiar todos, algo como a corrida espacial para a Lua, nos anos 1960. Isso não parece um foguete espacial, não é algo especialmente bonito, mas o desafio pode se tornar atraente e interessante. O trabalho de hoje nos leva de volta a Niemeyer. O assunto ainda é estética, mas temos de nos conectar a uma realidade maior.  

Diversão sem pirataria

Com o sucesso de novos formatos de venda, os consumidores se acostumam a pagar por conteúdo digital

GRAZIELE OLIVEIRA



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NOVA GERAÇÃO Os irmãos Samir e Lívia Atum na frente de seus laptops. Eles gastam R$ 40 por mês em músicas (Foto: Rogério Cassimiro/ÉPOCA)
Música (Foto: ÉPOCA)
Nos celulares dos irmãos Samir Atum, de 15 anos, e Lívia, de 13, é possível encontrar milhares de músicas – desde canções da banda indie Imagine Dragons a sinfonias de Mozart, passando por lendas do rock, como Black Sabbath, Guns N’Roses e AC/DC. Qualquer um conseguiria encontrar algo divertido nesse repertório, menos os defensores da pirataria. Não há um só arquivo ilegal nos iPhones e iPods da dupla. É tudo original, comprado de lojas oficiais de música na internet. Na década passada, quando a pirataria estava no auge e ameaçava acabar com a indústria fonográfica, era impossível imaginar que jovens como eles existiriam. Hoje, eles representam o futuro do consumo de conteúdo digital. A tendência vem se fortalecendo entre os consumidores de entretenimento e já é observada nos números mais recentes do setor. Segundo a Associação Brasileira dos Produtores de Discos (ABPD), o faturamento das diversas modalidades de negócios digitais atingiu a marca de R$ 111,4 milhões em 2012. Ultrapassou as vendas de DVDs e Blu-rays musicais. O mercado de música digital chegou a 28,37% do mercado total de música noBrasil – em 2011, esse percentual era 16%.

Até 2008, a pirataria digital avançava a uma velocidade assustadora. Em 2002, 99% dos arquivos on-line eram ilegais, de acordo com a estimativa da Federação Internacional da Indústria Fonográfica (IFPI). Em 2008, cerca de 40 bilhões de arquivos foram compartilhados ilegalmente – uma taxa de pirataria de 95%. O impacto da ação dos piratas foi tão forte que as vendas de CDs nos Estados Unidos desabaram.

Grandes lojas fecharam as portas. Em 2004, a britânica HMV saiu do país. Dois anos mais tarde, a Tower Records fechou todas as suas 89 lojas. Em 2009, a Virgin Megastore de Union Square, o maior armazém de discos de Nova York, com 5.000 metros quadrados dedicados à venda de artigos relacionados à música, encerrou suas atividades.

As vendas de CDs e DVDs continuam baixas, mas as grandes gravadoras finalmente conseguiram convencer o público a pagar por músicas no formato digital. Pela primeira vez nos últimos 13 anos, o faturamento da indústria fonográfica mundial cresceu entre 2011 e 2012. O crescimento se deve ao sucesso de lojas virtuais como o iTunes, que permite baixar faixas por US$ 0,99, e a serviços de streaming, que cobram uma mensalidade para que o usuário escute canções no computador ou no celular sem precisar fazer uma cópia. Boa parte desses sites oferece um período de degustação para quem está interessado em comprar uma assinatura. O preço e a praticidade são incentivos. “Baixar legalmente não é caro, é mais fácil e com boa qualidade”, diz Samir. Para as gravadoras e artistas, é uma boa fonte de renda. Em serviços de assinatura, 70% do faturamento vai para as gravadoras, segundo estimativas do mercado. Desse valor, elas repassam entre 30% e 50% para os artistas. Quanto mais sua canção é reproduzida, mais o artista ganha.
A música voltou a tocar (Foto: ÉPOCA)
“Há sete anos, a grande crítica era que a indústria fonográfica não sabia se adaptar ao mundo digital”, diz Claudio Vargas, vice-presidente no Brasil de digital e novos negócios da Sony Music. “Estamos trabalhando muito para entender, nos adaptar e conseguir oferecer modelos diferentes de serviços ao consumidor.” Segundo ele, o streaming é rentável para a indústria fonográfica de uma maneira diferente da habitual. Sai o modelo de receita garantida, proporcionada pela compra de meios físicos – os CDs e, depois, os DVDs – e entra o modelo de pagamento mensal de serviços on-line, capaz de oferecer um vasto catálogo de conteúdo. Todos, segundo ele, são sustentáveis do ponto de vista econômico. Os formatos digitais representam 40% dos negócios de venda de música da Sony no Brasil. Outras gravadoras também estão otimistas. “Acreditamos muito no Brasil no que se refere aos modelos de assinatura. Em quatro anos, esperamos que ele triplique. Isso colocará o Brasil entre os maiores mercados do mundo”, diz Danillo Ambrosano, diretor das áreas Digital, Novos Negócios e Licenciamentos da Universal Music Brasil.
JOGOS LEGAIS William Ribeiro, de 27 anos, só baixa jogos legalmente. “Piratear é perda  de tempo”, diz (Foto: Rogério Cassimiro/ÉPOCA)
Games (Foto: ÉPOCA)
A indústria cinematográfica também demorou para se mexer diante da ameaça da pirataria. O surgimento de serviços como o Netflix convenceu o usuário a pagar por filmes em vez de pirateá-los. As emissoras de televisão e os estúdios de cinema oferecem seu conteúdo em sites de streaming e, em troca, recebem uma parte da renda obtida pela Netflix com vendas de assinaturas. “Essas indústrias perderam o primeiro trem da inovação, no início dos anos 2000. Agora, a opção que lhes sobrou foi exatamente essa: negociar com parceiros de download legal”, diz Ronaldo Lemos, pesquisador visitante do Media Lab (laboratório de mídia) do Instituto de Tecnologia de Massachusetts. Algumas emissoras, como a HBO, começam a lançar, com sucesso, seus próprios serviços de streaming. A Netflix passou a investir na produção de séries próprias, como o elogiado drama House of cards, com Kevin Spacey. Não faltam boas opções para quem está disposto a pagar por filmes e séries.
 Um império chamado Google 

O segmento que reagiu mais rapidamente ao ataque pirata foi o de videogames. Ele continua mantendo o lucro com várias plataformas de distribuição de jogos digitais. Somente no Brasil, as vendas de games on-line em 2012 foram de US$ 1 bilhão. Espera-se que cheguem a US$ 2,4 bilhões em 2015. Nos EUA, as receitas com games em formato digital dobraram em 2012 e chegaram a 40% do total do setor de jogos. Um dos segredos dos estúdios de games foi desenvolver ferramentas que identificam o jogador. Só é possível jogar on-line com um game original. “Relacionamos o jogador a uma conta oficial e o tiramos do anonimato. Se nos dermos conta de que ele usa um jogo pirata, poderá ser banido e perderá o acesso à rede daquele game”, diz Bertrand Chaverot, diretor da Ubisoft América Latina. Reduzir o preço dos jogos foi outra tática da indústria. Hoje, é possível encontrar jogos novos on-line a partir de R$ 59. Games antigos são ainda mais baratos.
O sucesso desses novos modelos de venda de conteúdo foi acelerado pelo cerco judicial à pirataria. Uma das maiores vitórias dos estúdios e gravadoras veio em 2011, quando um dos maiores sites de compartilhamento de arquivos do mundo, o Megaupload, foi tirado do ar. Com o fim do supersite de pirataria, um estudo da Universidade Carnegie Mellon, nos EUA, concluiu que o faturamento das vendas e aluguéis de vídeos pela internet de dois estúdios de cinema subiu de 6% a 10%. Com isso, o Megaupload juntou-se ao Naspter, outro gigante da pirataria que também fora alvo das gravadoras. O programa que popularizou a troca de arquivos pela rede protagonizou a primeira grande luta jurídica entre a indústria fonográfica e os piratas. Quase foi banido. Em 2002, foi comprado pela Roxio e tornou-se um site de downloads legais.
A indústria também apoia projetos de lei. O Stop Online Piracy Act (Sopa), de combate a pirataria, e o Protect IP Act (Pipa) para proteção da propriedade intelectual são os mais maduros. As propostas provocaram manifestações ou interrupções de serviços de sites importantes, como Google, Wikipédia e Craigslist, de classificados, no início de 2012. Desde então, estão paradas no Congresso americano. São propostas que dariam um impulso ainda maior ao download legal. Além do apoio a novas leis, houve ainda uma onda mundial de processos contra quem violasse regras de direitos autorais. Em agosto, uma brasileira residente na Alemanha recebeu uma notificação da Fox. Cobrava uma multa de R$ 3 mil por baixar ilegalmente o filme A árvore da vida. Há casos mais impressionantes. Em 2012, uma americana foi condenada a pagar US$ 220 mil por piratear 24 músicas.

Com o cerco aos piratas, adultos que viveram o auge da pirataria se uniram à geração de adolescentes como Samir e Lívia, que cresceram acostumados a pagar por músicas, filmes e games. O contador Willian Ribeiro, de 27 anos, é um deles. Ele usa plataformas de downloads pagos há um ano. Joga on-line no PlayStation e no Xbox e assina um serviço especial de TV a cabo que lhe permite alugar filmes para ver quando quiser. Para ter acesso ilimitado a tudo isso, gasta R$ 170 por mês. Por mais que possa se sentir tentado a baixar filmes e games ilegalmente, o tempo perdido para procurá-los e a exposição do computador a armadilhas cibernéticas, como vírus, fazem essa vontade passar rapidamente. “Quero ter a mesma sensação de conforto e qualidade de estar no cinema, sem perder tempo e nem ter dor de cabeça”, diz.
ASSIM FICA FÁCIL O  aposentado José Jorge Alves aderiu aos sites de streaming. Piratear era complicado (Foto: Rafael Motta/Nitro/Época)
Vídeos (Foto: ÉPOCA)
Os downloads legais também permitiram que músicas, filmes e games digitais atingissem um novo público: pessoas que não sabiam piratear e não tinham paciência para aprender. Nesse time está o aposentado José Jorge Alves, de 63 anos. “Piratear é uma mão de obra danada! É preciso se preocupar com uma série de coisas, como colocar legenda, procurar o arquivo seguro e, mesmo assim, a qualidade quase sempre é ruim”, diz. Para não ter esse trabalho, ele prefere assinar a Netflix e dividir sua conta com a família. “Minha mulher assistiu a uma série famosa antes mesmo de passar na TV aberta brasileira”, diz.

Quase 40 anos separam as gerações de Ribeiro e Alves, mas os dois apontam a economia de tempo como principal razão ao optar pelo download legal. Na vida moderna, não vale a pena gastar vários minutos na internet procurando o melhor conteúdo para piratear. Em poucos segundos, por meio dos serviços legais, é possível ter um universo inteiro de músicas, games, livros e filmes a seu dispor, sem ameaças de vírus. E tudo em versões on-line e off-line. “Quando a Netflix chega a um país, notamos que o tráfego em sites de pirataria diminui”, afirma Joris Evers, diretor de comunicação da Netflix.
 Luís Antônio Giron: O fim das locadoras

Nunca fomos tão ávidos por serviços sob demanda, totalmente modelados a nossos hábitos. Queremos todos os meios funcionando ao mesmo tempo. Queremos ouvir a mesma playlist no celular, no carro ou na TV, sem interrupção. “Oferecer um serviço simples, que permite compartilhar arquivos, quase como uma rede social, é o único jeito de concorrer com a pirataria”, diz Mathieu Le Roux, diretor-geral da Deezer na América Latina.
Até mesmo os piratas convictos começam a se mostrar dispostos a pagar por conteúdo e vêm aderindo ao download legal. Segundo uma pesquisa do Ofcom, órgão que regula o setor de comunicações no Reino Unido, os 20% que mais fazem downloads piratas são também os que mais gastam dinheiro com conteúdo digital: em média, R$ 522 por trimestre. Quem baixa arquivos ilegalmente de vez em quando gastou R$ 326 nesse mesmo período. E quem não faz downloads ilegais gasta menos com conteúdo: R$ 295 por trimestre. Números como esses já foram usados como argumentos por aqueles que defendem a pirataria como benéfica para a indústria – afinal, os piratas gastam mais do que os não piratas. Vince Gilligan, criador da sérieBreaking bad, admitiu que os downloads ilegais ajudaram a tornar a série mais conhecida. Mas ele reconhece que a emissora AMC, que produz a série, teria lucrado mais se todos pagassem para assistir ao programa. “Todos que trabalharam em Breaking bad, incluindo eu, teríamos ganhado mais dinheiro se esses downloads fossem legais”, disse Gilligan, em entrevista à BBC. “Todos precisamos comer. Todos precisamos ser pagos.” Ao reduzir a remuneração dos autores, a pirataria reduz o incentivo à criação e à inovação – e prejudica o próprio público. Menos séries como Breaking bad vêm à tona por causa dos piratas.

Mesmo em pequena escala, a pirataria pode ser prejudicial – não só para os grandes estúdios, mas também para os usuários. Mesmo se escapar dos processos judiciais e das multas, quem baixa músicas e filmes ilegalmente corre o risco de se tornar mais desonesto. “Quanto mais cometemos pequenos atos ilegais, maior a chance de repetirmos esse comportamento e de começar a ignorar as regras em outros aspectos da vida”, afirma o psicólogo Dan Ariely, professor da Universidade Duke. “É o que chamamos de efeito ‘que se dane’.” Além de ser mais práticas do que a pirataria, as alternativas legais para o consumo de músicas, games e filmes permitem que o cidadão fuja dessa armadilha moral. Não custa caro ser honesto.

Se, na década passada, as previsões para o futuro do conteúdo digital eram apocalípticas, hoje há motivos para otimismo. “Estamos mais perto de um mundo em que o conteúdo pode ser consumido de forma legal e barata”, disse a ÉPOCA o advogado Lawrence Lessig, professor de Direito da Universidade Stanford, nos Estados Unidos. À medida que a indústria se ajusta aos desejos do consumidor e oferece novas opções para a venda de conteúdo, até os piratas mais convictos podem ser convertidos. O futuro pertence aos ex-piratas. A maturidade do conteúdo digital será marcada pelo equilíbrio entre o acesso à informação, o direito à propriedade intelectual e a inovação. 

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

O homem causou tudo isso?

O homem causou tudo isso?

A devastação provocada pelo Tufão Haiyan nas Filipinas revela a urgência no combate às mudanças climáticas 

MARCELO MOURA



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DEVASTAÇÃO Morador caminha sobre destroços em Tacloban.  O Haiyan  destruiu 90% da cidade, com ventos de mais de 300 km/h (Foto: Erik De Castro/Reuters)

"Saquear não é crime, é autopreservação.” A frase do prefeito de Tacloban, Tecson John Lim, dá a medida do horror que se instalou nas Filipinas após a passagem do Tufão Haiyan (ou Iolanda), no sábado, dia 9. O odor de cadáveres em decomposição dominava o ar do município de 200 mil habitantes, na costa do Sudeste Asiático, dias depois que ventos vindos do Oceano Pacífico, a mais de 300 quilômetros por hora, varreram 90% da cidade. As palavras de Lim expunham o desespero de moradores que saíram em busca de suprimentos básicos, como água e remédios, numa cidade onde muitos comerciantes e donos de casas invadidas morreram na tragédia. Inicialmente, as autoridades estimaram em 10 mil os mortosno país. Dias depois, o presidente Benigno Aquino reduziu a previsão para 2.500. Cerca de 620 mil pessoas ficaram desabrigadas. Longe dali, na conferência sobre o clima (COP-10) da Organização das Nações Unidas (ONU), em Varsóvia, na Polônia, já era apontado um culpado: o ser humano. Yeb Sano, negociador-chefe filipino, implorou por mais iniciativas dos países ricos contra as mudanças climáticas. “Falo pelas incontáveis pessoas que não poderão mais falar”, disse, em meio a lágrimas. “O que meu país enfrenta, como consequência desse evento climático extremo, é uma loucura. A crise no clima é uma loucura.”

É impossível afirmar, categoricamente, que a tragédia do Haiyan seja consequência direta das mudanças no clima da Terra. Os tufões formados no Pacífico são menos estudados que os furacões do Atlântico. As Filipinas investem pouco na compreensão de fenômenos naturais. O último voo de estudo de tufões naquela região foi promovido há três décadas, pelos Estados Unidos. Pesquisas realizadas em outras áreas do planeta permitem dizer que as temperaturas mais altas no planeta são, sim, capazes de agravar tragédias como a das Filipinas. Tufões, furacões e ciclones são tempestades formadas por áreas de baixa pressão atmosférica sobre regiões aquecidas dos oceanos. A frequência dessas tempestades não aumentou nas últimas décadas – de janeiro a setembro deste ano, foram 23 no nordeste do Pacífico. A fúria do fenômeno, sim, já que nas últimas décadas os oceanos se aqueceram. “Oceanos mais quentes dão mais energia a essas tempestades e as tornam mais intensas”, diz Colin Price, diretor do Departamento de Ciências Geofísicas, Atmosféricas e Planetárias da Universidade de Tel Aviv, em Israel.

O último relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas da ONU (IPCC, na sigla em inglês) afirma que a alta do nível do mar, resultado do derretimento de calotas polares, aumenta as chances de inundações e fortes tempestades. Com mais água nos oceanos, um fenômeno como o Haiyan se torna mais destruidor para populações costeiras – grande parte da devastação em Tacloban foi causada pela água do mar, como um tsunami. “É prematuro dizer que o Haiyan tenha sido fruto da ação humana”, diz Thomas Knutson, pesquisador-chefe de impactos no clima da Agência Nacional Oceânica e Atmosférica dos Estados Unidos (Noaa). “Mas nossos estudos sugerem que até o fim do século o aquecimento global deverá aumentar a incidência de furacões entre 2% e 11%.”
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O consultor Robert Bea, mestre em prevenção de desastres e professor emérito da Universidade Berkeley, alerta para o atual despreparo de muitas cidades costeiras. “Os pioneiros das Filipinas construíam em regiões ‘altas e fortes’ para evitar os efeitos dos tufões”, afirma Bea, sobre uma prática abandonada com o tempo. Os antigos filipinos sabiam que a fúria da natureza é incontrolável. Se ela tende a aumentar, como creem os cientistas, combater o aquecimento do planeta é imperativo. Ainda mais urgente é proteger as populações que vivem no caminho da destruição.
Como nascem os tufões (Foto: ÉPOCA e Jes Aznar/The New York Times)

 
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