Há sempre um
frisson muito grande com o anúncio de projetos de porte como este da Ferrovia Transoceânica (ou Bioceânica, como prefere alguns).
Trata-se ainda mais de intenções do que definições. É um projeto de longo prazo e ninguém mais sério nunca tece dúvidas disso. Muitas questões ainda estão em aberto.
A participação da China como se tem ventilado é uma possibilidade, mas, até que se prove em contrário dependerá de participação em processo licitatório, no trecho brasileiro.
Forma de participação da China
Neste caso, a participação da China teria que ser definida, se como investidora ou financiadora. Estas são duas formas diferentes de participação: a primeira seria como acionista; na segunda como banco, com empréstimo e valores pagos em dinheiro, ou em mercadoria, como quase sempre prefere os chineses.
Há ainda a possibilidade mista da China participar como construtora, assim, como atuou, por exemplo, a Sinopec, há cerca de uma década, na construção do gasoduto Cabiúnas, RJ, ES e Bahia. A discussão aí seria sobre o uso de mão de obra chinesa em parte do empreendimento, que o Brasil tem se manifestado contra.
Interesse chinês com escoamento de aço que sobra na produção siderúrgica chinesa
Há que ser considerado que a China além de possuir boa expertise em tecnologia e construção ferroviária, os chineses têm interesse em escoar o aço produzido em grande quantidade em seu país.
Assim, o projeto da ferrovia serviria para dar vazão à produção de aço para os trilhos a serem usados nos 4.400 quilômetros que é a extensão prevista para a ferrovia só em solo brasileiro, desde o litoral fluminense até a localidade de Boqueirão da Esperança, no Acre, de onde seguiriam em direção ao sul do Peru.
Traçados da ferrovia e os impactos socioambientais
Há ainda que se considerar o traçado desta ferrovia. Antes ele já envolveu o Porto de Santos no lado sudeste brasileiro, a passagem pelo Mato Grosso, saída no Atlântico pela Bolívia. Outro de Mato Grosso pelo Peru e agora, envolvendo também o Acre, o que mostra que há muitas indefinições.
Inclusive, não deve ser considerado um aspecto menor em todo este planejamento, aqueles que dizem respeito à questão ambiental e também aos impactos sobre as comunidades originárias e tradicionais, instaladas ao longo deste imenso trecho de ferrovias. Indenizações, desapropriações, remoções e deslocamentos, são processos difíceis, demorados e conflituosos.
A ligação transoceânica tem concorrência
Como comentamos na nota anterior (na segunda-feira) este projeto na íntegra, concorre de alguma forma, não apenas com o atual Canal do Panamá que está tendo sua ampliação ainda concluída em projeto bastante caro bancado por fortes grupos europeus e americanos.
Além disso, ele concorre também com o projeto de um empresário privado chinês que pretende construir um canal cortando toda a Nicarágua, na América Central, como forma de também ligar os dois oceanos e ser alternativa ao Canal do Panamá.
Como o blog já comentou
aqui, a ligação transoceânica interessa aos chineses para reduzir fretes entre os dois lados e ser uma alternativa às caras tarifas do Canal do Panamá.
Porém, não é preciso ser especialista no assunto para saber que ninguém vai colocar carga no litoral fluminense numa ferrovia e retirar do outro lado da América do Sul, em um Porto do Peru e julgar que isso possa ser mais barato do que o não dar a volta no continente, ou pagar as tarifas do Canal do Panamá.
As rotas entre o litoral fluminense, os EUA, seguindo em direção à Ásia, passando pelo sul da América, ou pelo Panamá pode variar entre 20 mil e 22 mil quilômetros. Porém, desde o Pacífico no Peru, elas caem para cerca de 16/17 mil quilômetros.
Esta é a grande diferença, tanto em gastos de combustíveis, poluição com seus resíduos, como ocupação dos grandes navios em tempo no transporte entre os continentes asiáticos e americanos.
À China interessa mais permuta do que devolução ou pagamento do dinheiro investido
Os chineses preferem atuar e têm se dedicado especial interesse em investimentos de infraestrutura que agregue valor a negócios de seus interesses. Neste sentido, o traçado da ferrovia, além de integrar o continente sul-americano, área de seu grande interesse (por alimento, mineral e energia) cria facilidades e redução de custos de logísticas de transporte para minério, soja (outros agronegócios).
O lado do Pacífico no Peru tem mais probabilidade de ser o start
Desta forma, juntando os dados acima é possível intuir que um maior interesse dos chineses pelo escoamento de cargas minerais e do agronegócios (alimentos, em especial soja), possa se dar mais pelo lado peruano, já saindo pelo Pacífico, do que pelo Porto do Açu.
A partir daí é possível interpretar que seria muito mais provável o início da construção pelo lado do Pacífico, no Peru, do que no extremo leste no litoral fluminense do Açu. E nesta hipótese há ainda que ser observada em que porto peruano o modal ferroviário seria interligado.
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Infográfico da FSP em 13-05-15 |
Hoje, seriam três opções portuárias. Porém, em qualquer um deles, novos investimentos para novos terminais, diques e quebra-mar, aumento da profundidade dos canais de atracação, ampliação de cais, automação da movimentação de cargas, etc. consumiriam, uma outra enorme quantidade de recursos.
Do lado do Porto do Açu, o interesse maior se dá no petróleo
Do lado brasileiro e fluminense, há como grande vantagem a conexão para apoio à produção petrolífera, onde hoje se tem a presença de quatro petroleiras chinesas: Sinochem, Sinopec e CNPC e CNOOC.
Hoje, as duas primeiras já produzem (números do último boletim da ANP de maio, sobre produção de março de 2015), um total de 82 mil barris por dia (equivalentes óleo e gás) nas Bacias de Campos e Santos.
Enquanto isso, as outras duas petrolíferas, China National Petroleum Corporation (CNPC), China National Offshore Oil Corporation (CNOOC) participam com 10% cada do consórcio para exploração do gigante campo de Libra, nas reservas do pré-sal brasileiro.
No caso da Sinopec, com a descoberta de campo produtor gás na Bacia de Campos, anunciado recentemente, cresce as chances de formalização do negócio de um gasoduto até o porto para atendimento e geração de energia elétrica, através de uma UTE à gás.
Há ainda em negociação a operação, junto ao terminal 1 do Porto do Açu para a operação de troca de navios, entre embarcações de alívio e petroleiros de grande capacidade (ship-to-ship), para transporte de óleo até à China.
Projeto complexo, mas estratégico, potente e de grande influência geopolítica
Enfim, pelas razões resumidas acima, se percebe que se trata da construção de um grande projeto que tem costura financeira, técnica e política complexa, mas simultaneamente de uma articulação estratégica muito potente, envolvendo importantes cadeias produtivas e com imensa influência no poder estratégico na geopolítica mundial.
É fácil compreender que a decisão de executá-lo não significará no dia seguinte a montagem dos canteiros de obras, sem que diversas questões sejam antes articuladas. Porém, de outro modo, nada indica que ele só será iniciado se todas as questões sejam antes resolvidas.
Certamente já existem enormes resistências a que este projeto siga em frente. Rotas comerciais, muitos outros interesses e disputas intercapitalistas, além das estratégicas, já se movimentam e são perceptíveis até para quem não acompanha de perto este projeto.
Assim, é fácil deduzir que a questão política-estratégica vem antes de tudo isto. Nesta linha, as informações dão conta de que haveria vontades bem determinadas pela sua execução. Desta forma, ela é explicada pelas várias mudanças que se vê na conjuntura em curso na Economia Global.
O risco e a oportunidade de surfar sobre a onda com o risco de ser capturado e “encaixotado”
Trata-se de decisão estratégica com poder de interferir na superestrutura e não apenas na periferia dos negócios. Está em jogo um esforço entre a tentativa de superar a dependência e a subordinação no jogo global e se inserir nas cadeias de valor de forma cooperativa e numa perspectiva de novos alinhamentos mundiais.
Riscos e oportunidades continuam sobre o tabuleiro, ou, visto sobre o simbolismo da “onda global” (aproveitando a boa performance da garotada do surfe brasileiro), o que se tenta é surfar sobre ela, com todos os riscos de cair e levar “o caixote”, com a cooptação das riquezas e dos excedentes de nossa emergente economia.