Autora: Miriam Leitão
Editora: Record
Páginas: 476
Preço médio: R$ 29,90
Livro 100% nacional!
A longa luta de um povo por sua moeda
Muitos dizem o que brasileiro tem “memória curta” e que pouco aprende com seus erros, voltando a cometê-los em pouco tempo. Se hoje temos uma moeda estável, com inflação sob controle (baseado em um sistema de metas), e que representa parte da grande transformação econômica vivida na última década, muito se deve ao fato de termos passado momentos difíceis e angustiantes ao lado de muitos planos e tentativas de estabilização monetária.
Erramos muito e, contradizendo o ditado, aprendemos e mudamos. Miriam Leitão, jornalista premiada e referência na área, aborda essa “travessia” brasileira rumo ao Real e à construção de uma economia confiável. Seu livro “Saga Brasileira” narra em detalhes as agruras vividas pelos brasileiros diante de planos econômicos fracassados, políticos despreparados e ideias mirabolantes (e falhas). O livro mostra como a batalha pela cidadania e soberania terminou com o país vencendo a inflação.
Muitos de nossos leitores são jovens e não viveram o período de inflação, razão pela qual decidi escrever essa resenha. Para se ter uma ideia do que era a inflação por aqui há algumas décadas, cabe citar o cálculo realizado pelo professor Salomão Quadros, da FGV (e citado no livro). De julho de 1964 a julho de 1994, data do Plano Real, a inflação acumulada, medida pelo IGP-DI, foi de 1.302.442.989.947.180,00%. Isso mesmo, 1 quatrilhão e 302 trilhões por cento. Parece piada? Não foi!Um século de inflação
O alerta inicial de “Saga Brasileira” é direto: nossos primeiros 100 anos de República, comemorados em 1989, foram marcados por inflação elevada (e vários períodos de hiperinflação). Lembrando Visconde de Taunay e sua obra “O Encilhamento”, Miriam destaca o que antes não se via: “Nesses 100 anos de encilhamento à hiperinflação o país aprendeu, dolorosamente, a lição de que a ordem monetária é a única base do progresso duradouro”.
Nossa democracia é bastante jovem, assim como é a estabilização da moeda. Ler“Saga Brasileira”, no entanto, parece nos remeter a um país completamente diferente, antigo e despreparado. Nossa constituição tem pouco mais de 20 anos, o Plano Real nem isso. A verdade é que o país se transformou, mas o fez também porque sofreu com inúmeros planos econômicos e seus desdobramentos (que serviram de aprendizado, assim me parece).
Muitos planos, muitos problemas, mas muito aprendizado
O Plano Cruzado surgiu com Sarney em 1989 e, com o congelamento de preços, ele logo se tornou uma esperança. Os juros quase em zero fizeram o consumo estourar e muita gente então passou a satisfazer seus desejos represados de consumo. Quem mexesse nos preços sofria a intervenção dos famosos “fiscais do Sarney”. Funcionou por um tempo, mas logo o desabastecimento e o ágio passaram a fazer parte da vida dos brasileiros.
Então surgiu o Cruzado II, um plano cujo mote era aumentar os preços de serviços públicos, mas ao mesmo tempo descongelar os preços e deixá-los a cargo dos empresários. A ideia era enganar mesmo, mantendo um índice de preços arbitrário que não captasse os aumentos de preços reais. A mágica não funcionou!
“Qualquer moeda estável exige fundamentos fiscais mais sólidos. Seria necessário, nos anos seguintes, pôr ordem nas contas públicas, abrir a economia, desmontar oligopólios públicos e privados, incentivar a competição, modernizar a estrutura produtiva, mudar o Brasil. A grande lição de 1986 foi que a moeda estável não se conseguiria por mágica”
Em 1987, foi a vez do Plano Bresser, que surgiu depois de anunciado o calote na dívida externa brasileira. A credibilidade do país perante os agentes externos era ridícula – e só viria a ser recuperada anos depois. O Plano Bresser durou pouco e fracassou, entre outras coisas, simplesmente porque os empresários se anteciparam a um novo congelamento. O resultado foi a remarcação preventiva e a prática de esconder produtos com preços que poderiam subir.
Em janeiro de 1989 apareceram o Plano Verão e a moeda Cruzado Novo. O verão nem bem terminou e o plano foi considerado um fracasso. Naquele ano, a inflação batia 40% ao mês, chegando a 55% no último mês do ano. O período merece um destaque especial no livro “Saga Brasileira”:
“Dar calote era um grande negócio. Vários pequenos e médios empresários deixavam títulos irem a protesto. Assim ganhavam tempo. Nunca, como naquela época, tempo foi igual a dinheiro. Quando quitavam a dívida no cartório, semanas depois, podiam pagar sem correção monetária. Um excelente negócio para quem devia”
O ano de 1989 terminou com uma inflação de 1.782%. O alho subiu 3.471%; O azeite, 3.400%. Em 1990 viria Collor, tão conhecido por permitir a abertura econômica do país (renegociação da dívida externa e início de privatizações), mas também como sendo o “caçador da poupança”. Seu plano congelou as aplicações de muitos brasileiros e colocou diante da nação uma equipe econômica fraca e despreparada.
“Apesar de a economia ter ficado em estado de coma com o ippon dado por aquele plano amalucado, apesar do imediato colapso do consumo, a inflação sobreviveu ao golpe, provando que a economia é terreno de intervenções elegantes e não de grosserias como aquela. Naquele 1990, o país teve a pior recessão da sua história”
Mudanças estruturais entraram em pauta
Todos os planos entremearam mudanças mais profundas, que foram realizadas pouco a pouco. A profissionalização da gestão monetária foi um dos passos, com a instituição do Banco Central (função antes a cargo do Banco do Brasil). O aspecto administrativo também passou por mudanças, contando a criação de um orçamento unificado e um sistema bancário mais inteligente (sem a conta-movimento).
A abertura econômica, e a consequente concorrência dos produtos brasileiros com os importados, também teve papel fundamental na modernização de nossas bases econômicas. Vivemos por muito tempo com incentivos sem contrapartida, ou seja, dinheiro público muito fácil e sem exigências de qualidade e retorno ao cidadão. Neste sentido, o Plano Collor foi um divisor de águas. Miriam aborda profundamente a questão em “Saga Brasileira”:
“Pela falta de competição de importados, os produtores locais sabiam que podiam combinar preços e baixar qualidade. O consumidor nada podia contra esses efeitos da economia. A inflação crônica tinha várias raízes, mas uma, sem dúvida, era o fechamento da economia à competição externa”
Sobre a privatização, Miriam também é enfática:
“O Brasil começou naquele tempo a desmontar um Estado que se agigantou em áreas onde o melhor é ter o setor privado com boa regulação e boa defesa da concorrência. O desmonte foi mostrando o quanto as estatais eram onerosas, cabides para os políticos, e como a descuidada administração produziu déficits, pagos por todos os brasileiros”
O Plano Real
Depois da forçada saída de Collor do poder, Itamar Franco assumiu o país e, por indicação de Roberto Freire, trouxe Fernando Henrique Cardoso para o Ministério da Fazenda – até então ele ocupava a pasta de Relações Exteriores. FHC fora o quarto ministro de Itamar para a Fazenda e aquele que deu os primeiros passos rumo ao Plano Real. A inflação em 1993 fora de mais de 1000% ao ano e era hora de fazer alguma coisa.
Fernando Henrique, então Ministro da Fazenda, assustou-se com a falta de informações e controle econômico do governo. Montou uma equipe multidisciplinar e passou a elaborar o que viria a ser o Plano Real. Participavam das reuniões e definições profissionais como Pedro Malan, Edmar Bacha, Persio Arida, Gustavo Franco, André Lara Resende e Clóvis Carvalho, entre outros.
O sucesso do plano dependia, em grande parte, da atuação do governo diante da população. A adoção da Unidade Real de Valor (URV) como padrão monetário facilitou a transição, que começou em fevereiro de 1994. Em março, FHC lançou-se candidato à Presidência da República. O Plano Real foi oficialmente lançado em 1º de julho de 1994.
“As estatísticas do IBGE registram o tamanho da saga brasileira: nos 15 anos anteriores ao Plano Real (jan/1980 a dez/1994), a inflação acumulada foi de 13.342.346.717.617,70%, em resumo, 13 trilhões e 342 bilhões por cento. Nos 15 anos posteriores ao Real (jan/1995 a dez/2009), a inflação acumulada foi de 196,87%”
Turbulências de um país que rumava para a estabilidade econômica
Os anos que se seguiram à adoção do Plano Real mostraram-se desafiadores. O controle da inflação exigiu correções de rumo importantes, mas que mexeram com diversos aspectos da nossa economia. Os bancos sofreram com problemas de falta de transparência e gestão (muitos “viviam” da inflação) e viveram anos complicados. Três dos dez maiores bancos brasileiros quebraram (ao todo, 30 bancos sumiram). Outros foram reestruturados, capitalizados e vendidos.
Dos 300 bancos, 100 sofreram algum tipo de intervenção do Proer. A crise bancária gerou aprendizado e deu origem ao Fundo Garantidor de Crédito (FGC), uma entidade privada, administrada pelos bancos, e capitalizada com uma fração dos depósitos bancários. A entidade hoje garante até R$ 70 mil por CPF em caso de quebras bancárias.
O ano de 1996 foi marcado por voltar a ter uma inflação de apenas um dígito, fato não ocorrido em quarenta anos. Desde então surgiram problemas com o câmbio, que era alvo de desavenças no governo. Alguns defendiam a livre flutuação da moeda, enquanto outros eram contra. O câmbio fixo havia contribuído para segurar a inflação, mas o calote russo em 1998 e o clima político do início do segundo mandato de FHC aceleraram o funcionamento do câmbio flutuante.
Armínio Fraga assumiu o Banco Central e enfrentou a crise de 1999 liberando o câmbio, criando o sistema de metas de inflação e propondo um ajuste fiscal inteligente. Fraga recuperou a credibilidade brasileira no exterior e colocou em prática a tão sonhada autonomia do Banco Central.
Lula lá!
As Eleições de 2002 foram marcadas pelo temor do mercado. Como diz Miriam em“Saga Brasileira”, era preciso que “a moeda sobrevivesse à transição política”. Apesar de membros do PT apelidarem o Plano Real de “plano eleitoreiro”, Lula decidiu focar seus esforços em manter a política econômica e melhorá-la. As mudanças recentes mostram que o caminho da economia estável precisa ser mantido e defendido.
Avaliação final
O livro “Saga Brasileira” é um livro muito gostoso de ler. Aprender mais sobre nosso país é dever de cada cidadão, especialmente sobre tudo aquilo que vivemos e passamos para finalmente conquistar melhoras e poder usufruí-las. O Brasil de hoje é muito diferente daquele que originou o Plano Real. É ainda mais diferente daquele que deu os primeiros passos rumo à democracia. Aprendemos muito, mas ainda há muito que fazer. Sobre o livro, opino:
Linguagem e narrativa: 9
- Exemplos práticos: 9,5
- Temas abordados: 9,5
- Preço: 8
- Custo/Benefício: 9
Você deve ter ficado bastante curioso com a breve história comentada nesta resenha. Pois saiba que “Saga Brasileira” reserva detalhes ainda mais especiais sobre nossa caminhada rumo à estabilização da moeda. Miriam Leitão é uma especialista em jornalismo cidadão e aborda com inteligência e muitos exemplos cada etapa dessa travessia. O quanto sofremos está bem detalhado no livro; mas o quanto aprendemos e mudamos também. Leitura recomendada especialmente para os mais jovens!