sábado, 5 de setembro de 2015

Ilha Solteira sofre com reservatório de usina em 0%, nível mais baixo do país

No noroeste paulista, a cidade foi projetada em torno de uma usina hidrelétrica na década de 1970. Hoje, enfrenta a crise gerada pela estiagem dos últimos anos

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Marcio Pimenta - National Geographic Brasil - /08/2015
Marcio Pimenta
Em uma tarde quente de dezembro, surge de uma viela um homem que grita para os céus: “Obrigado, meu Deus! Está chovendo em Ilha Solteira!”. Ele continua a gritar de alegria até alcançar a Praça dos Paiaguás. Localizada no centro da cidade, a praça recebeu esse nome para homenagear a tribo indígena homônima, conhecida por suas habilidades como canoeiros e guerreiros que nunca recuavam diante do inimigo. O homem se deixa molhar e segue caminhando até fugir do alcance dos meus olhos, confundindo-se entre os milhares de luzes que enfeitam a praça e a Avenida Brasil, encantando adultos, crianças e turistas. A caixa-d’água, um monumento funcional com 30 metros de altura, ostenta a iluminação de uma árvore de Natal de dar inveja a muitas capitais do país. Relâmpagos anunciam chuva, enquanto as crianças encenam o espetáculo O Milagre do Natal. Mas não há graça divina, são apenas alguns pingos d’água e, nos dias seguintes, um calor que supera os 30°C volta a castigar a região. Chuva em Ilha Solteira, cidade que abriga uma das maiores hidrelétricas do país, é agora um golpe de sorte, quase extinta - como os paiaguás.

Estamos agora em maio de 2015, e, assim como no último Natal, as águas dos rios Paraná, Tietê, São Francisco, Uruguai, entre outros, estão passando a toda velocidade, fazendo girar as turbinas das hidrelétricas. Com uma economia abundante em recursos naturais, o Brasil cresceu e se desenvolveu tendo como base para a matriz energética as hidrelétricas, uma fonte limpa e renovável de energia. Em períodos de poucas chuvas, as usinas diminuem a capacidade de geração para que possam reter parte dessas águas no reservatório. É aí que entra em ação o ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico), órgão responsável pela coordenação e controle da operação da geração e transmissão de energia elétrica no Sistema Interligado Nacional. O sistema aciona outras fontes de energia, como as termelétricas espalhadas pelo país, para que o abastecimento não seja prejudicado. Tudo automático. As fontes alternativas estão a todo o vapor (inclusive aquelas baseadas em combustíveis fósseis, como o carvão, que polui o meio ambiente) para garantir que o país não pare - as indústrias e empresas possam continuar produzindo e nós possamos acompanhar pela TV a partida de futebol do nosso time favorito, navegar na internet ou que não percamos o que irá acontecer com o personagem da novela ou série.

As águas dos reservatórios ajudam a garantir o abastecimento energético do Brasil e são também o modo de vida e fonte de renda para muitas famílias, empresas e o governo local. Quando um reservatório está em seu ponto de equilíbrio, acontece o que os engenheiros chamam de “situação ótima” para todos: irrigação, geração de energia, piscicultura, pesca, transporte, abastecimento para consumo humano etc. O problema é que o que antes era abundante agora é alvo de disputa. “A ganância do homem acabou com os peixes”, queixa-se Claudionor Gonçalves Gomes, o Mozinho, pescador durante o dia e proprietário de uma peixaria à noite. Ele chegou à cidade em 1972, quando a usina de Ilha Solteira ainda estava em construção. “Eram peixes grandes, bonitos e agora não temos quase nada.” Pergunto a ele se não seria melhor abandonar a pesca e dedicar-se apenas à peixaria.
“Eu pagava mil e seiscentos reais na conta de luz aqui da peixaria, agora são mil e novecentos. Não dá, tenho que me virar como posso, essas termelétricas são caras.”

Mozinho é mais um personagem em uma das maiores crises hídricas da história recente. Desde 1986, quando iniciou-se o monitoramento na região, não se via algo assim. No noroeste paulista, fronteira com o Mato Grosso do Sul, a usina hidrelétrica de Ilha Solteira está com seu reservatório na capacidade mínima: 0%. O nível mais baixo do país. “Em função do atual regime hidrológico, o nível do reservatório da usina encontra-se em cota inferior ao mínimo útil operacional, fixado em 323 metros. À meia-noite de 30 de novembro de 2014, o nível do reservatório estava na cota de 319,5 metros”, informa a assessoria de imprensa da Cesp (Companhia Energética de São Paulo). Sua capacidade máxima, a “situação ótima”, seria 328 metros.

Ainda assim, a usina segue em operação, trabalhando com sua capacidade mínima, por ordem e controle do ONS. Essa diferença aparentemente pequena - por volta de 9 metros - é suficiente para fazer grandes estragos na economia. As margens do reservatório recuaram até 100 metros nas praias de Ilha Solteira e municípios vizinhos, como Santa Fé do Sul e Pereira Barreto, prejudicando o turismo - importante atividade econômica da região. E reativar esse setor não é tarefa simples. “Muitos dos turistas que nos visitam são pessoas que já moraram aqui e retornam para ver a família e matar a saudade”, diz, com o conhecimento de quem é pioneiro na exploração do turismo na região, José Aparecido Trevisoli, proprietário de um restaurante que fica à margem da represa.

“O trem está feio”, avalia. José se refere à forte queda no movimento. As margens do rio ficavam próximas ao seu estabelecimento, mas com o recuo das águas os turistas agora precisam se deslocar dezenas de metros. Alguns preferem ignorar o restaurante e estacionar seus carros mais próximos da margem. José volta seus olhos para as águas. “Já atendi até 3 mil pessoas por dia. Hoje são 150. Dependo disto aqui, não tenho nenhuma outra fonte de renda. Tenho mulher e dois filhos. Fazíamos até uma reservinha para a época de baixa temporada. E agora? Como vou fazer?”, resigna-se.

Ele me chama para caminhar pela praia como se quisesse me contar um segredo. Paramos a certa distância e então ele volta-se para o restaurante novamente. Apoia uma das mãos sobre os meus ombros e aponta para um rapaz que está servindo uma porção de peixe à milanesa em uma mesa com três turistas. “Num dia de domingo como este, eu tinha até 15 funcionários. Demiti todo mundo. Agora somos eu, meu filho, minha nora e minha esposa. Veja lá o meu filho, ele está fazendo tudo: atende, faz a porção de tira-gostos, leva na mesa e fecha a conta. Ele cobra o escanteio e cabeceia para o gol.”

Continuamos a caminhada e percebo que os outros estabelecimentos estão ainda mais vazios que o de José. “Estão todos mal. Mas tenho a expectativa de que os turistas ainda vão vir. Se eu vender 50% do que vendi no ano passado, para mim está ótimo.” E se isso não acontecer?, pergunto a ele. “Tem que acontecer.”

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