terça-feira, 19 de maio de 2015

O papa Francisco no redemoinho do clima

TEMPO

O papa Francisco no redemoinho do clima

Ele abraça a tese de que mudanças climáticas são resultado da ação humana e enfurece céticos do aquecimento global

CRISTINA GRILLO
 FONTE REVISTA ÉPOCA
10/05/2015 - 10h00 - Atualizado 10/05/2015 10h00
QUESTÃO MORAL O papa recebe uma lufada de vento na Praça São Pedro. Para ele, aderir  à causa tem conotações sociais (Foto: Gregorio Borgia/AP)
Ele já discorreu sobre temas controversos, como a aceitação de gays pela Igreja Católica e a ação de religiosos pedófilos. Negou a existência de fogo no inferno, de Adão e de Eva. Disse que católicos não precisam “procriar como coelhos” e que qualquer pessoa, quando provocada, tem o direito de revidar – esqueça aquela conversa de oferecer a outra face. Afirmou que justiça social “não é invenção comunista”. Em uma favela carioca, no auge das manifestações de 2013, ateou fogo aos jovens: pediu que fossem revolucionários e que se rebelassem. Na semana passada, chamou de machistas aqueles que atribuem às mulheres que trabalham fora a culpa pela crise das famílias – e disse que o fato de elas ganharem menos que os homens é “escandaloso”. Agora o papa Francisco se prepara para meter o santificado bedelho em mais um vespeiro: o aquecimento global.

Francisco prepara uma encíclica sobre meio ambiente, a primeira a se concentrar na relação dos seres humanos com a máxima criação divina – o planeta Terra. Uma encíclica é uma espécie de carta circular endereçada a bispos e cardeais, com diretrizes sobre determinados temas. Para desespero daqueles que contestam a responsabilidade dos seres humanos nas mudanças climáticas, o documento dirá que a ação do homem nesse campo é uma verdade comprovada pela ciência, e que reduzir esse impacto é um imperativo moral. No entender de Francisco, o aquecimento global afeta a todos, e principalmente os mais pobres – já que enchentes e maremotos, por exemplo, podem se tornar calamidades sociais. Daí a motivação moral e religiosa de se tratar do tema. Combater as mudanças climáticas seria, assim, uma questão de justiça social.
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Como bom estrategista de comunicação, o papa escolheu criteriosamente o momento para divulgar a preparação do documento, que deverá vir a público em junho. Em setembro, a ONU realizará em Nova York uma reunião para discutir metas de desenvolvimento sustentável. Francisco, que estará em visita aos Estados Unidos nesse período, foi convidado pelo secretário-geral da entidade, Ban Ki-moon, para participar do encontro. Três meses depois, em dezembro, Paris sediará a 21ª Conferência Mundial sobre Mudanças Climáticas (COP 21), na qual se espera que países se comprometam com metas de redução de emissão de gases e com regras  para a diminuição do aquecimento global. Ban Ki-moon conta com a pressão papal para que as negociações deslanchem.

Um rascunho da encíclica foi discutido no Vaticano, em encontro organizado pelas Pontifícias Academias de Ciências e de Ciências Sociais. Participaram líderes políticos, religiosos, empresários e cientistas. Na declaração final do encontro, afirma-se que a COP 21 pode ser a última oportunidade para a concretização de acordos que mantenham o aquecimento global em limites seguros para a humanidade. “A redução das mudanças climáticas exigirá uma rápida transformação para um mundo movido a energias renováveis e de baixa emissão de carbono; e de gerenciamento sustentável de ecossistemas”, diz o texto.
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A possibilidade de intromissão papal na seara científica provocou a reação dos defensores da tese de que o homem não é responsável pelo aquecimento global.  No alto de sua página na internet, a ONG Heartland Institute, fundada pelos irmãos milionários americanos Charles e David Koch, do setor de petróleo, estampava o título: “Digam ao papa Francisco: aquecimento global não é uma crise”. Enquanto as lideranças se reuniam no Vaticano, a Heartland organizou um seminário em Roma sobre o tema. “O papa está sendo induzido ao erro pelos experts da ONU. Ele prestaria um desserviço a sua batina e ao mundo ao colocar sua autoridade moral sob a agenda não científica do clima das Nações Unidas”, disse Joseph Bast, presidente da Heartland.
 
ALIANÇA Francisco e o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon. Ban conta com “a autoridade moral” do papa para avançar em negociações sobre o clima (Foto: L’Osservatore Romano/AP)
A reação antecipada à encíclica papal não vem apenas de empresários como os Kochs. Robert Peter George, pensador da ala conservadora da Igreja, escreveu no jornal First Things que os católicos devem ter em mente que papas não são autoridades em assuntos científicos. Nem precisou citar Urbano VIII, que condenou Galileu Galilei por defender a tese de Copérnico – segundo a qual a Terra não era o centro do Universo, mas sim orbitava ao redor do Sol. O recado foi claro. Autor de livros como O que é casamento: homem e mulher, uma defesa, George diz que Francisco tem o direito e a responsabilidade de ensinar e unir católicos em questões de moral, inclusive quando se trata de suas obrigações com relação ao meio ambiente. Mas George afirma que o papa não sabe se, e em qual extensão, as mudanças climáticas das últimas décadas são causadas pelo homem. “E Deus não vai lhe contar isso”, escreveu.

Francisco não é o primeiro papa a se preocupar com questões ambientais. Seu antecessor, Bento XVI, costumava escrever sobre o tema. Em 2008, em encontro com padres na Itália, Bento disse que “Deus confiou ao homem a responsabilidade pela criação” e que enfrentar os problemas das mudanças climáticas era uma obrigação moral dos católicos. Ainda em 2008, ele acrescentou a poluição ambiental à lista de pecados capitais pelos quais os seguidores da religião devem pedir perdão. Bento, no entanto, era considerado excessivamente intelectualizado e com pouco carisma, de forma que suas advertências não foram adiante.
 
A possibilidade de encíclica papal sobre o aquecimento gerou críticas de empresários do petróleo e de católicos conservadores
Já a encíclica de Francisco, cujo rascunho tem o título provisório de Mudanças Climáticas e o Bem Comum, não deverá ficar restrita às discussões acadêmicas. Com seu carisma e sua forte visão de como usar os meios de comunicação, o papa levará adiante a discussão sobre a responsabilidade dos seres humanos na degradação ambiental. Ao tratar de um tema não exclusivamente religioso, a encíclica de Francisco poderá ter um impacto político tão forte quanto a Rerum Novarum (Das Coisas Novas), sobre as condições dos operários, escrita por Leão XII em 1891. Nela, o papa apoiava o direito de criar sindicatos e discutia as relações entre governo, empresários, operários e Igreja.

“Bento XVI vivia em uma torre de marfim. Escrevia livros e tinha a esperança de que eles mudassem as pessoas. O papa Francisco sabe como vender suas ideias”, diz o pensador católico Charles Reid Jr. O ringue da polêmica está armado. Para alguns ecologistas, a recusa da Igreja em aceitar métodos de controle de natalidade contribui para a degradação ambiental, já que a explosão demográfica pressiona os recursos do planeta. Nada que tire o sono de alguém que já disse que os católicos não precisam se reproduzir como coelhos. Um papa que, ao se despedir do presidente do Equador, Rafael Corrêa, aproveitou para contar mais uma de suas piadas sobre o ego dos argentinos. “Eles ficaram surpresos quando eu decidi me nomear Francisco. Esperavam que eu fosse Jesus II”, disse o ex-cardeal Jorge Mario Bergoglio. Francisco sabe que quem não tem bom humor não merece ser levado a sério – e, com convicção e sorrisos, coloca discussões espinhosas e atuais na agenda dos católicos.

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