segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Doce água

Doce água

Vai existir água suficiente em um mundo cada vez mais populoso?   

por Barbara Kingsolver
     
Jim Brandenburg

Água: tempestade no lago Tofte, na região norte de Minnesota

Uma tempestade de verão reabastece o lago Tofte, na região norte de Minnesota
Toda manhã, quando minha filha e eu percorremos o caminho desde a nossa casa de fazenda até a parada do ônibus escolar, ficamos com os olhos bem atentos para alguma maravilha. Quase sempre que topamos com uma, ela reflete a magia da água, como uma teia de aranha com gotas de orvalho formando um colar de cristais translúcidos. Ou uma garça cor de chuva alçando voo desde a beira do riacho. Em uma manhã assombrosa, o caminho foi invadido pelas rãs. Dezenas delas pulavam na relva diante de nós, lançando-se em arcos saltitantes com suas barrigas brancas - mais parecia que havíamos sido surpreendidas por uma tempestade de anfíbios. Em outra ocasião, cruzamos com uma tartaruga-mordedora, com sua primitiva carapaça cor de oliva. Normalmente, ela é uma criatura que se restringe às lagoas, mas algum impulso obscuro levou esse espécime até o nosso caminho de cascalho, usando a semana chuvosa como passaporte para deixar a nossa fazenda e passear.
Outro motivo de encanto permanente para nós é o riachinho sem nome que corre através do vale. Antes de mudarmos para o sul da região de Appalachia, vivemos por muitos anos no Arizona, onde um córrego permanente como esse merece tornar-se reserva natural. No Arizona, o estado do Grand Canyon, lembramos que a água é capaz de transformar a superfície da terra, rasgando o deserto rochoso como se fosse um pêssego, em fendas com 1,5 mil metros de profundidade. Ali as cidades funcionam como estações espaciais, obrigadas a trazer de remotos rios e aquíferos cada gota de água doce. Tão forte é a propensão humana a considerar a água como um direito de nascença que ainda são comuns fontes públicas borbulhantes nas praças das cidades do Arizona, assim como fazendeiros empenhados em cultivar safras sedentas. Porém, a verdade se insinua em todas essas fantasias quando os moradores do deserto passam meses esperando pela chuva, vendo os cactos apertarem os cintos e as aves papa-léguas disputarem as preciosas gotas que pingam de uma torneira de jardim. Sem água não há vida. Ela é o caldo salgado de onde surgimos, o sistema circulatório do mundo, uma franja molecular na qual podemos sobreviver. Até dois terços de nossos corpos são constituídos de água, tal como nos mapas-múndi; nossos fluidos vitais são salgados, tal como a água dos oceanos. Tal pai, tal filho.
Mesmo enquanto damos como líquida e certa a presença da Mãe Água, nós, seres humanos, sabemos que, no fundo, é ela quem manda. Estabelecemos nossas civilizações nos litorais e junto aos grandes rios. Nosso maior temor é a ameaça de escassez - ou excesso - de água. Nos últimos tempos aumentamos a temperatura média do planeta em 0,74°C, um número que parece insignificante. Mas a água é a face visível do clima e, portanto, das mudanças climáticas. A alteração nos padrões de precipitação provoca inundações em algumas regiões e secas em outras, enquanto a natureza nos demonstra uma importante lição da física: a de que o ar quente contém mais moléculas de água que o ar frio.
Bem longe do recanto encharcado em que vivo, o vale do Bajo Piura é uma imensa área recoberta pelas mais secas areias que já pisei. Estendendo-se desde a costa noroeste do Peru até o sul do Equador, o deserto de Piura, com 36 mil quilômetros quadrados, abriga muitas formas de vida espinhosas e endêmicas. Essa ecorregião costuma ser classificada como seca e muito seca, e a borda sul do Bajo Piura seria considerada por qualquer pessoa como o lugar mais seco de todos. Entre janeiro e março, ali caem apenas 2,5 centímetros de chuva, dependendo dos caprichos de El Niño, segundo explicou o meu motorista enquanto seguíamos pelo esburacado leito do rio Piura. Durante horas atravessamos campos esturricados, arruinados por anos de irrigação, e passamos por vales escaldantes cujas condições são intoleráveis para qualquer coisa além de uma algarobeira de raízes profundas, a Prosopis pallida, a árvore mais adaptável a terrenos áridos. E também, surpreendentemente, algumas famílias dispersas do Homo sapiens.
Eles são refugiados econômicos, em busca de terras que não custam nada. Isso não implica que a sobrevivência no Bajo Piura não tenha outros custos, pois o frágil ecossistema também paga um preço à medida que as pessoas ampliam a desertificação ao transformarem em lenha o que resta de vegetação. O que me leva ali, como jornalista, é um inovador projeto de reflorestamento. Conservacionistas peruanos, em parceria com uma organização não governamental, a Heifer International, estão convencendo os moradores a criar cabras e bodes, pois eles se alimentam das vagens ricas em proteínas das algarobeiras e depois dispersam as sementes pelo deserto. À sombra de um precário abrigo, uma jovem mãe coloca sua panela amassada sobre um fogo alimentado por excrementos secos e mostra como deixava coalhar o leite de cabra para fazer queijo. Mas é difícil encontrar tempo para tirar o leite das cabras, pois ela, tal como as outras mulheres que conhece, todos os dias precisa caminhar oito horas para buscar água.
Os maridos dessas mulheres estão cavando um poço ali perto. Trabalham com colheres de pedreiro, uma forma de compensado para revestir de cimento a parede do poço, avançando centímetro por centímetro, e usam uma robusta manivela improvisada para descer um homem até o fundo e de lá retirar baldes de areia. Uma dezena de homens esperançosos, com chapéus de palha sujos, afasta-se para que eu possa examinar o trabalho, que até então havia resultado apenas em um monte de areia completamente desprovido de umidade. Espio no fundo daquele buraco escuro e então me viro e subo no topo do monte de areia para esconder lágrimas pouco profissionais. Para mim era difícil compreender esse tipo de perseverança.
Eles ainda estão lá, escavando a areia ressequida e sobrevivendo a duras penas, como um microcosmo da vida neste planeta. Não há saída. Quarenta por cento dos lares na África subsaariana estão situados a mais de meia hora de uma fonte de água, e essa distância só aumenta. Os fazendeiros australianos não podem mais acompanhar a mudança nos padrões de precipitação, pois ela se deslocou para o sul e as chuvas caem sobre o oceano. Todos estamos na mesma situação, e ela requer o máximo de nós.
Desde pequena ouvi dizer que, quando se está no fundo de um poço, dá para ver as estrelas, mesmo à luz do dia. Aristóteles falou disso, assim como Charles Dickens. Em muitas noites escuras, a imagem daquele trecho arredondado do céu repleto de estrelas me proporcionou conforto. Só que há um problema: isso não é verdade. A civilização ocidental não se mostrou muito disposta a descartar essa imagem folclórica. Os astrônomos acreditaram nela por séculos, até que alguns deles resolveram verificar - bastou uma observação para que ruíssem as ilusões.
Do mesmo modo, nossa civilização reluta em se desfazer de outro mito: o da infinita generosidade do planeta Terra. Recusando a ver os claros indícios em contrário, continuamos acreditando nisso. Bombeamos a água dos aquíferos e desviamos o curso dos rios, confiando em duas estrelas-guia: a irrestrita expansão humana e o suprimento infinito de água. Agora os lençóis freáticos estão se esgotando em países que abrigam metade da população mundial. É como se todos nós tivéssemos estourado, de maneira espetacular, nossas contas bancárias.
Em 1968, o ecologista Garrett Hardin publicou um ensaio com o título The Tragedy of the Commons ("A Tragédia dos Recursos Comuns"), que desde então virou leitura obrigatória para os estudantes de biologia. Ele trata dos problemas que somente podem ser resolvidos por meio de "uma mudança nos valores humanos ou nas ideias de moralidade", naquelas situações em que a busca racional do interesse individual conduz à ruína coletiva. Criadores de gado que dividem pastagens comunitárias, por exemplo, vão progressivamente aumentando seus rebanhos até que o pasto é destruído pelo uso excessivo. Em vez disso, a aceitação de limites autoimpostos, algo no início inconcebível, passa a ser a única saída. Enquanto nossas leis supõem um critério moral fixo, Hardin sustenta que "a moralidade de um ato é função da condição do sistema no momento em que tal ato se realiza". No passado, com certeza não era nenhum pecado abater pombos e comê-los em tortas.
A água é o mais fundamental dos recursos comuns. Os cursos d’água antes pareciam tão abundantes quanto os pombos, e a noção de preservar a água era tão ridícula quanto a de engarrafá-la. Mas as regras mudam. Incontáveis vezes os países estudaram os sistemas aquáticos e redefiniram os critérios de uso mais sensato. Agora o Equador se tornou a primeira nação do planeta a incluir os direitos da natureza em sua Constituição, de modo que rios e florestas não sejam simplesmente propriedade, mas desfrutem de um direito próprio de prosperar. Sob tal legislação, um cidadão pode abrir um processo em favor de uma bacia hidrográfica ameaçada, reconhecendo que a saúde dela é crucial para o bem comum. Outros países talvez sigam os passos do Equador. Do mesmo modo que, no passado, o sistema legal hesitou em reconhecer os direitos das mulheres e dos ex-escravos, hoje as faculdades de direito nos Estados Unidos vêm reformulando seus currículos visando compreender e reconhecer os direitos da natureza.
Sobre a minha mesa, um copo com água reflete a luz do entardecer, e continuo atenta às maravilhas naturais. Quem é dono dessa água? Como posso considerá-la minha se o destino dela é circular por rios e corpos vivos, tantos já passados e outros tantos no futuro? Ela é antes uma antiga e deslumbrante relíquia, esperando para retornar aos seus, esperando para mover montanhas. Ela é o padrão do meio circulante biológico, e a boa nova é que há incontáveis maneiras de preservá-la. Além disso, ao contrário do petróleo, a água sempre vai fazer parte de nossas vidas. Nossa confiança na generosidade da Terra tinha em parte razão de ser, uma vez que toda gota de chuva acaba no oceano, e o oceano chega ao firmamento. E em parte era infundada, porque não somos indispensáveis para a água. É bem o oposto. Nossa missão é descobrir maneiras razoáveis de sobreviver no interior dos limites dela. Faríamos bem em fixar a vista em novas estrelas-guia. O suave estímulo das evidências, a orientação da ciência e um coração empenhado em proteger os recursos comuns: esses são os instrumentos de um novo século. Contemplar com assombro um planeta repleto de água é a nossa maneira de ver o que está em jogo e de conhecer melhor o nosso lugar.

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