sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Onças D’água

NA COPA DAS ÁRVORES

Onças D’água

Na Amazônia, quando o rio inunda a várzea, os maiores felinos das Américas deixam de ser animais terrestres

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Daniel Nunes Gonçalves
National Geographic - 11/2014
Luciano Candisani


Primeiro aparece o filhote. Acomodado entre os galhos no alto da árvore, exibe um olhar assustado. Pelo seu tamanho, calcula-se que deve ter uns 6 meses de vida. Quando a canoa se aproxima a 3 metros do tronco submerso, dá para ver a mãe, uns 20 metros acima da linha d’água. Ela olha, dá uma espreguiçada como se estivesse enfadada para receber visitas, vira a cara e se afasta copa adentro. Tudo muito natural. "E então ficamos ali observando por uns 20 minutos, como se fôssemos babás, até que o filhote dormiu e decidimos partir", conta o biólogo carioca Emiliano Esterci Ramalho. Em cerca de dez anos observando a onça-pintada nas florestas de várzea da Amazônia, ele nunca tinha visto seu objeto de estudo tão à vontade naquele ambiente aquático.

A evidência de que antes suspeitava agora parece incontestável: dono de incrível flexibilidade ecológica, o maior felino das Américas pode viver no alto das árvores.

"Mesmo a 12 quilômetros do solo seco mais próximo, as onças não se sentiram ameaçadas e pareciam tranquilas em casa", conta Emiliano. Para o pesquisador da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, que há seis anos monitora o ziguezague florestal dos bichanos, deparar ao vivo com a onça-mãe - apelidada de "Cotó" por não ter rabo - nessa condição é uma parte importante de um inédito quebra-cabeça ecológico: descobrir o que as onças fazem quando toda a floresta da Reserva Mamirauá fica alagada. Nenhum dos oito animais monitorados desde 2008 abandonou o ambiente inundável da várzea nos três ou quatro meses anuais de cheia - um comportamento inusitado e nunca antes observado em felinos de grande porte.
Luciano Candisani
O biólogo Emiliano Ramalho, com a antena na mão (acima), tenta localizar as onças marcadas com colares de telemetria VHF e GPS na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, que fica a 1 hora de barca da cidade de Tefé
Emiliano conta essas e outras histórias dos felinos selvagens para um grupo de turistas hospedados na Pousada Flutuante Uacari, base para quem visita Mamirauá, quando o telefone toca. São 22 horas de uma noite de lua cheia em março, e uma emergência o obriga a interromper a palestra: um jovem bolsista que tinha saído pela manhã para instalar armadilhas fotográficas não havia voltado do trabalho de campo - assim como o guia "mateiro" que o acompanha.

Estudar um animal desse porte no ambiente inóspito da maior floresta do planeta (e a mais de 500 quilômetros da capital mais próxima, Manaus) é uma atividade de risco, e Emiliano teme pelo pior. Convoca por rádio moradores locais para o acompanharem, equipa-se, assume o volante de uma voadeira e desaparece na escuridão do Rio Solimões floresta adentro. Nós, visitantes, não sabíamos, mas os traiçoeiros rios da região já tinham feito o próprio pesquisador capotar com o bote metálico três vezes: duas delas ao passar sobre os gigantescos peixes pirarucus durante o dia e outra ao atropelar um jacaré à noite.

Nos dias anteriores, ao explorar uma milésima parte desse exuberante laboratório natural de mais de 1 milhão de hectares, eu já havia constatado que onças, pirarucus e jacarés são apenas alguns temas dos 104 projetos de pesquisa e manejo conduzidos atualmente em Mamirauá. Criada nos anos 1990 a partir do sonho do primatólogo José Márcio Ayres (1954-2003) de preservar o berço do uacari-branco (um macaco de cara vermelha que se acreditava só existir ali), a primeira reserva de desenvolvimento sustentável do Brasil nasceu com um conceito inovador para a época: proteger o peculiar ambiente de várzea amazônico, produzir ciência de qualidade e envolver as populações tradicionais na conservação das espécies - em vez de tirá-las de seu universo, como era feito até então com o pretexto de que toda área de conservação deveria ficar intacta.
Luciano Candisani
A criança salta para o rio em uma das comunidades de Mamirauá. Assim como para os animais da mata, a água determina o ritmo da vida ao longo do ano.
A pesquisa sobre os hábitos arborícolas e aquáticos das onças-pintadas na várzea amazônica atrai a atenção da sociedade científica internacional. "Este estudo de longo prazo é importante porque mostra que, nas condições únicas das florestas inundáveis, as onças têm moldado seus hábitos ao ambiente aquático, alterando inclusive o que e quando comem", comenta o alemão naturalizado americano George Schaller, que trabalha para grupos conservacionistas como Panthera e Wildlife Conservation Society.

"As onças de Mamirauá não têm a opção de fugir para áreas secas próximas, como acontece com suas parentes do Pantanal", afirma outro biólogo, Peter Crawshaw Jr., um dos maiores conhecedores da espécie no Brasil. Nos dez anos em que rastreou mais de 20 desses felinos nos vastos alagados pantaneiros, também graças a colares de telemetria, Crawshaw nunca viu onças vivendo em copas de árvores. "Enquanto durante a estação seca no Pantanal nossos estudos mostraram que a área média ocupada por cada onça foi de 143 quilômetros quadrados, na cheia, entre dezembro e abril, elas se aglomeravam em apenas 10% do território, o que facilita a alimentação e a reprodução da espécie", explica.

Segundo dados coletados pela equipe do Projeto Iauaretê, capitaneado por Emiliano Ramalho, existem mais de dez onças a cada 100 quilômetros quadrados da reserva durante o período em que a várzea de Mamirauá não está alagada. Elas continuam vivendo em meio a uma das mais altas densidades populacionais desses felinos do planeta, caçando, se reproduzindo e criando seus filhotes no ambiente singular de uma ilha de alagável rodeada pelos rios Japurá e Solimões - como é chamado, nesse ponto, o Rio Amazonas. Na temporada de enchentes de Mamirauá as onças permanecem restritas ao mesmo universo geográfico da seca, apesar da mudança radical do cenário. Nos meses de maio a julho, a superfície das águas sobe em média 10 metros nos 200 mil quilômetros quadrados de várzea em decorrência da intensidade da estação das chuvas da Floresta Amazônica e do derretimento da neve nos Andes - onde fica a nascente do Amazonas e de outros rios da mesma bacia.
Luciano Candisani
Emiliano Ramalho visita uma casa cujo dono, anos atrás, matou uma onça. Os ribeirinhos são alertados para a importância da conservação da espécie.
A maior parte da população humana da Amazônia se concentra ao longo desses grandes rios em função da facilidade para pescar, plantar e se locomover de barco. É justamente a gente ribeirinha dessa área de várzea quem mais tem sua rotina alterada durante as cheias. Como acontece com as onças, os humanos também migram do piso térreo de suas palafitas para o andar de cima - carregando fogão e geladeira para o mesmo cômodo da cama ou da rede de dormir. Em vez de circular com pé na terra, trabalhar na roça e bater bola no campinho de futebol, o povo passa a ter basicamente a pesca como ofício e fonte de alimento, dependendo da canoa até para ir à escola, à igreja e ao vizinho.

Embora em cada 100 quilômetros quadrados da reserva habitem 85 pessoas e dez onças, ataques desses felinos não são comuns - como apontaram entrevistas com mais de 300 moradores locais entre 2010 e 2013. Auxiliar de cozinha da Pousada Uacari, Vanderlei Rodrigues, o Seu Manduca, protagonizou um desses casos raros em 2004. "Eu voltava de uma pescaria quando uma onça me atacou, mordeu meu rosto e me jogou no rio", lembra ele, hoje com os 28 pontos da cicatriz na face quase imperceptíveis. Seu Manduca superou o trauma e há anos é um convicto voluntário das expedições que capturam felinos para instalar colares com GPS.
Luciano Candisani
Este filhote de onça foi capturado e teve alguns dentes serrados. Caçadores ainda são vistos em reservas próximas, como a de Purus e de Amanã - nesta última, até pouco tempo atrás, um morador exibia seis cabeças do bicho na sala de casa.
É provável que a onça que atacou Seu Manduca estivesse faminta, dado que cada uma precisa de 2 quilos a 2 quilos e meio de carne por dia para sobreviver. Pela análise das fezes dos felinos, os pesquisadores descobriram seu alimento predileto: o bicho-preguiça. Ele se move lentamente nos mesmos topos de árvores e divide a preferência no cardápio com outra iguaria, o jacaretinga. Durante a cheia, quando os jacarés estão mais espalhados e escondidos na água, as onças complementam sua dieta com o macaco guariba.

Nessa época, o primata mora ao lado do inimigo felino que está no topo da cadeia alimentar. O tamanho da presa ajuda a explicar por que as onças do Pantanal pesam o dobro das parentes amazônicas, que são menores e não costumam ter mais que 60 quilos. Na planície pantaneira, o menu mais farto inclui capivaras, queixadas e porcos monteiros - bichos terrestres que nem sequer existem em Mamirauá justamente porque não têm para onde correr (ou onde se pendurar) quando as águas encharcam tudo.

Além da descoberta científica inédita, o comportamento inusitado das onças de Mamirauá acabou abrindo, em 2014, as portas da reserva ao turismo de observaçãodos animais. Experiências semelhantes há anos atraem jipes e voadeiras repletos de turistas ao Pantanal e a parques da África e da Ásia. Na reserva amazônica, porém, a iniciativa é diferenciada. Batizadas como Jaguar Expeditions, as exclusivas - e caras - expedições acontecem apenas nos meses de cheia e são restritas a grupos de quatro visitantes que remam em canoas silenciosas sob as copas das árvores. "Não se trata de um safári convencional, mas de turismo científico", explica Gustavo Pereira, coordenador da Pousada Flutuante Uacari. "Além da observação, o turista trabalha com o time de pesquisadores fazendo o rastreamento das onças e instalando câmeras fotográficas na mata."
Luciano Candisani
A jovem onça descansa na copa semisubmersa de um apuí, ou gameleira, árvore que é um dos lares preferidos dos grandes felinos durante o período de inundação
Os dois grupos que saíram a campo em maio e junho deste ano obtiveram 100% de sucesso no avistamento dos grandes felinos, e o valor que investiram teve três fins: gerar benefícios econômicos para as comunidades locais, permitir a continuidade dapesquisa científica e pagar a equipe de nativos com diárias dobradas - para que os ribeirinhos entendam que manter viva essa espécie ameaçada de extinção é mais valioso do que caçá-la, por exemplo, para vender sua pele. Toda noite, depois da perseguição às onças do alto das árvores, os turistas se reúnem com Emiliano para avaliar o trabalho do dia. Nas curiosas imagens registradas, já foram vistas onças mexendo ou fazendo xixi na câmera e até com um jacaré na boca. Os animais são reconhecidos com base nos desenhos de suas pintas, que funcionam como impressões digitais - e seus nomes são quase sempre divertidos, como Mudinha, Caolha, Confuso e Zangado.

Depois do susto vivido no dia de minha visita, quando Emiliano interrompeu a palestra para resgatar - só às 14 horas do dia seguinte - o bolsista e o guia perdidos na mata (que estavam sãos e salvos), o pesquisador não viveu dias tão tensos. Continua, é claro, militando pela preservação das florestas de várzea para que a onça-pintada siga reinando. O trabalho de campo na selva, enquanto isso, não para. Entre as constatações que o acompanhamento dos felinos de Mamirauá apontou recentemente, duas surpresas. A primeira é triste: Cotó, a mãe que forneceu a primeira prova do comportamento arborícola das onças de Mamirauá, foi morta por um morador da reserva quatro meses depois de ser observada com seu filhote pelos cientistas, em 2013. "Recebemos a localização dela por GPS e chegamos a uma comunidade onde o morador a tinha abatido para evitar que seu gado fosse atacado", conta Ramalho.

Outra conclusão é mais curiosa: diferentemente do que se imaginava, Cotó não era o único felino sem rabo na reserva; isso acontece com cerca de 10% dos animais monitorados. "Os registros fotográficos que temos indicam que os jacarés-açu podem ser responsáveis pela predação de onças durante as inundações, arrancando ocasionalmente seu rabo", diz. Deduz-se que isso aconteça quando as onças d’água estão nadando para se locomover no habitat aquático - e único - de Mamirauá.

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