terça-feira, 2 de dezembro de 2014

A era dos extremos

A era dos extremos

As mudanças climáticas criam um descompasso no planeta. Enquanto em alguns lugares ocorre seca recorde, em outros nunca choveu tanto

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Jennifer Ann Thomas e Raquel Beer
Veja - Especial Água* - /10/2014
Tim J Keegan/Creative Commons

*Este texto faz parte do Especial Água; veja os outros textos que integram este especial no box ao lado.

Há uma constatação incontornável: o planeta passa por drásticas mudanças climáticas que fazem proliferar cenários extremos, de áreas com secas persistentes a outras com tempestades intensas. Desde o início dos registros históricos, em 1880, a temperatura na Terra subiu 0,85 grau e aumentou a uma taxa de 0,05 grau ao ano na última década. Parece pouco, mas é o suficiente para criar um trágico descompasso no clima global.

No Ártico, onde o aquecimento ocorre em ritmo duas vezes maior, o volume de mar congelado diminuiu 80% desde 1979, pondo em risco espécies endêmicas, a exemplo do urso-polar. Condições climáticas improváveis se espalham. No mês passado, enquanto Índia e Paquistão eram alagados por chuvas torrenciais, deixando mais de 400 mortos, a Inglaterra teve o setembro mais seco de sua história, com precipitação equivalente a 20% do total esperado.

No Brasil, com suas dimensões continentais, os extremos são sentidos à exaustão. Em São Paulo, o índice de chuvas até agosto ficou 42% mais baixo que o esperado, na maior seca da história do estado. Já o Sul, o Nordeste e o Norte registram recordes de chuvas. Mas, se as anormalidades são inevitáveis, são também inescapáveis suas consequências, a exemplo da falta de água em regiões secas, como São Paulo, e inundações onde chove demais?

O impacto das mudanças climáticas é evidente. No Brasil, é fácil associar o aquecimento global à massa de ar quente e seco que permaneceu por três meses estacionada sobre as regiões Sudeste e Centro Oeste, dificultando a formação de chuvas. O resultado é o esvaziamento de reservas e o racionamento de água em quase setenta municípios paulistas e mineiros, no que ficou conhecido como o "cinturão da seca". O extremo climático era inevitável, só que previsível.

Climatologistas, por meio de projeções matemáticas, já haviam estimado que a região passaria por um intenso período de estiagem nos anos 2010. Diz Suzana Kahn, presidente do Comitê Científico do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas: "Sabemos que as alterações no clima global aumentaram a incidência e a intensidade de eventos extremos, o que terá consequências socioeconômicas, como o racionamento de água e o aumento do preço de alimentos, por problemas na agricultura". Se temos ciência, podemos nos preparar.

Mesmo assim, continuou o desperdício na captação de água, e não se investiu para aprimorar a estrutura precária de distribuição. No Brasil, a cada 10 litros de água limpa retirados de represas para consumo, 4 vazam em encanamentos deteriorados e desvios ilegais ou durante o transporte. Em São Paulo e em Minas Gerais, o desperdício é de 3 em 10 — o caso brasileiro mais preocupante é o do Amapá, com mais de 7 litros jogados fora a cada 10 captados.

Apenas em 2012, 1 trilhão de litros de água foram perdidos em ligações clandestinas, os "gatos", que afetam a infraestrutura da Sabesp, a companhia de saneamento de São Paulo. Para efeito de comparação, a taxa de desperdício de água limpa é de 15% na Europa, 3% no Japão e se aproxima de zero em países acostumados à estiagem, a exemplo de Israel.

Vêm de fora os bons exemplos de como lidar com secas agudas, e todos envolvem um planejamento adequado da administração pública. A Califórnia, nos Estados Unidos, adaptou-se para enfrentar secas recorrentes e a atual já dura quatro anos. Por efeito das mudanças climáticas e do uso excessivo de sua água pelo homem, o Rio Colorado, o sétimo mais longo do país, que abastece cidades americanas e mexicanas, e que deságua no golfo californiano, teve seu nível reduzido em 40 metros desde 1920 e deve perder mais 10% de seu volume atual nas próximas quatro décadas. Para lidar com a situação trágica, o estado californiano importa água de outras regiões, recicla o que usa e passou a investir na dessalinização de água do oceano. "Só temos água para nossa população porque começamos a nos planejar há vinte anos", pontuou o americano David Sedlak, professor de engenharia mineral da Universidade da Califórnia em Berkeley.

Países acostumados às secas se preparam. Singapura, por exemplo, importa 40% de sua água da Malásia, vizinho com recursos hídricos abundantes. Quase 40% do abastecimento potável de Israel, que tem 60% de seu território tomado por desertos, é feito por água dessalinizada dentro do país. Em porcentagem deve chegar a 70% até 2050, com mais investimentos em infraestrutura de dessalinização.

Em uma extrapolação, a Estação Espacial Internacional (ISS, na sigla em inglês), casa de astronautas de várias nacionalidades posicionada a 330 quilômetros de altitude, é exemplo máximo de como se pode adaptar um ambiente para situações radicais. Ela conta com um aparelho capaz de condensar a umidade do ar e transformá-la em água, incluindo o suor de seus residentes. Desde 2010, a ISS possui uma máquina de 250 milhões de dólares, desenvolvida pela Nasa, a agência espacial americana, para reciclar toda sorte de líquido, da água usada para lavar as mãos a moléculas de combustível.

Quase a totalidade dos líquidos que circulam pela ISS é reutilizada. Sem esse sistema, seria necessário gastar 564 mil dólares ao ano para enviar mais suprimentos à equipe de astronautas. Na estação, a água de torneiras e duchas ainda sai com a metade da pressão comum na Terra. Enquanto no planeta desperdiçamos 100 litros de água em um banho de dez minutos, lá são usados somente 4.

O caso da ISS pode parecer distante, mas é exemplo máximo de como o homem precisa se adaptar a ambientes criados por ele mesmo. Segundo o mais recente relatório do Painel Internacional de Mudanças Climáticas (IPCC), órgão da ONU, é de 95% a probabilidade de o homem ter sido o principal responsável por intensificar as mudanças climáticas que afetam o planeta. Fizemos isso ao emitir, principalmente pelaqueima de combustíveis fósseis, mais de 375 bilhões de toneladas de gases de efeito estufa desde a Revolução Industrial, no século XVIII, aumentando em 40% o que o planeta estava naturalmente acostumado a receber. Isso criou uma redoma de calorao redor da Terra. A situação piora pela falta de cuidado do homem com um de seus recursos mais valiosos.

Por exemplo: um levantamento recente da ONU aponta que 70% do lixo industrial de países subdesenvolvidos é descartado em lagos, rios e oceanos. Utilizamos água limpa sem cuidado, pelo costume de ter acesso em abundância, principalmente no Brasil, que concentra 12% de todos os recursos hídricos do mundo. A situação do planeta só se agravará daqui para a frente. O IPCC estima que a temperatura global deve subir ao menos 1,3 grau até 2100.

Em efeito contínuo, tempestades e inundações seriam mais frequentes em áreas que já sofrem com isso, e regiões áridas ou que começaram recentemente a sofrer com secas anormais, a exemplo de São Paulo, teriam os períodos de estiagem intensificados. Resta-nos aprender a lidar com as consequências de nossas atitudes desmedidas.

O PARADOXO DA ANTÁRTICA
Uma área do planeta parece imune ao fenômeno do aquecimento global: a Antártica. Nos últimos trinta anos, 95% dos modelos climáticos publicados previam uma drástica diminuição do mar congelado e o aumento de temperaturas na região. O que ocorreu foi surpreendente. No mês passado, o mar congelado da Antártica registrou a maior extensão de sua história, batendo o recorde pelo terceiro ano consecutivo. São mais de 20 milhões de quilômetros quadrados de gelo, ou 6,6% acima da média para o continente.

O polo é ponto fora da curva também no quesito temperatura. Lá foi registrada, no ano passado, a temperatura mais baixa já captada pelo homem na Terra, de 94,7 graus negativos. O comportamento do Polo Sul ainda não é completamente compreendido. A teoria mais aceita para explicar a anomalia diz que o responsável por resfriar a região é, ironicamente, o buraco na camada de ozônio. As emissões de gases estufa no último século destruíram 21,2 milhões de quilômetros quadrados da camada acima da Antártica. Esperava-se que o efeito seria a elevação da temperatura e o derretimento das geleiras. Ocorreu o contrário.

O buraco possibilitou que a Antártica refletisse para o espaço o calor irradiado. A falta de ozônio na atmosfera ainda teria aumentado em até 20% os ventos que levam o ar frio do centro do continente para o Mar de Ross, a oeste, onde ocorreu 80% da expansão de área congelada. O El Niño, fenômeno climático que deve se estabelecer até o fim do ano, pode intensificar esses ventos e colaborar ainda mais para o aumento da superfície gelada. Conclui a climatologista Julienne Stroeve, do University College of London: "O Polo Sul está sendo afetado, mas de forma diferente do previsto".

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