quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Deserto encantado

Deserto encantado

Vento e chuvas esculpiram a paisagem dos Lençóis Maranhenses. Mas esse parque enfrenta problemas

por Ronaldo Ribeiro
     
George Steinmetz

Maranhão: paisagem de dunas e lagoas

O vento e a água esculpiram um improvável mundo de dunas e lagoas na costa do Maranhão. É como uma miragem, mas é real
No litoral do Maranhão, no Nordeste do Brasil, as dunas têm formato de lua crescente e, vistas do céu, lembram lençóis brancos expostos para secar sob o sol em tarde de ventania. É uma terra mágica, onde cardumes de peixes prateados nadam em lagoas que se formam depois das chuvas, pastores conduzem rebanhos de cabras sobre montanhas de areia branca, em caravanas bíblicas, e pescadores saem para enfrentar o mar tempestuoso sob a orientação das estrelas e de fantasmas de velhos naufrágios.
"A sensação é a de estar numa espécie de mundo paralelo, onde elementos distintos da natureza se encontram, com montanhas de areia e lagoas, rios e oásis de vegetação, tendo o mar como moldura ao fundo", descreve a analista ambiental Carolina Alvite, ex-diretora do Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses, uma área de 155 mil hectares demarcada em 1981 para proteger o ecossistema das dunas e a vegetação de restinga no entorno. No coração do deserto, aos olhos de forasteiros entorpecidos pelo verde ou azul intenso das lagoas, a sensação é a de que o mar das Bahamas ou das Maldivas foi, num passe de mágica, transportado para o meio do Saara.
Este é um deserto onde as miragens são reais.
Há 27 anos, o geógrafo Antônio Cordeiro Feitosa, professor da Universidade Federal do Maranhão, tenta entender a singular dinâmica dos Lençóis, caminhando pelas areias com seus alunos, medindo a direção e a velocidade do vento, a temperatura e a umidade do ar e da superfície do solo. As dunas fixas mais antigas, descobriram os pesquisadores, foram formadas até 12 mil anos atrás, e nos contam histórias de oscilações climáticas em que períodos mais secos foram intercalados por outros mais úmidos. "Os Lençóis são, acima de tudo, um palco de processos sedimentares raros e intensos, pelos quais a paisagem é transformada radicalmente por rigorosos ciclos sazonais", conta Cordeiro.
Todas as respostas vêm da água. A própria areia vem da água. A marcha de acontecimentos naturais que alimenta o cenário insólito começa quase 100 quilômetros a leste, no delta do rio Parnaíba, cujo leito caudaloso carrega para o mar muita areia e argila desde o interior do continente - outros rios, como o Preguiças, são coadjuvantes no mesmo trabalho. Essa massa de sedimentos é depois empurrada por correntes marinhas que fluem no sentido leste-oeste, e a maior parte dela acaba depositada nos 70 quilômetros da orla dos Lençóis, na área do parque nacional. Aqui, assim como em uma vasta faixa de costa no norte do Brasil, as marés são altas, vão a 7 ou 8 metros, e desenham praias muito largas e planas. Entra em ação a seguir um vento que sopra sem trégua na direção nordeste, sobretudo na estação seca, entre julho e dezembro, e se encarrega de conduzir a areia de volta ao interior por uma distância de quase 50 quilômetros, esculpindo dunas a perder de vista, cujas maiores podem alcançar 40 metros de altura. Grande parte delas é de um tipo conhecido como barcana, em formato de meia-lua, em que a parte convexa é sempre voltada para o vento.
Seria um deserto típico, arenoso e estéril, de horizontes amplos e luzes ofuscantes, mas então chove, e muito. A cada ano, entre janeiro e junho, a região recebe cerca de 125 centímetros de chuva, ao passo que, por definição científica, desertos têm precipitações que não superam 25 centímetros por ano. Um subsolo argiloso facilita a retenção da umidade e, em alguns lugares, o desenvolvimento de vegetação perene - há dois oásis habitados no interior dos Lençóis. Quando as areias ficam saturadas, liberam água para o lençol freático. Como a argila não permite a percolação da água para zonas mais profundas, a drenagem ocorre horizontalmente para aflorar em depressões entre as dunas, formando as la-goas. Algumas têm mais de 90 metros de comprimento e até 3 metros de profundidade. No início de julho, época em que estão mais cheios, esses corpos d’água chegam a interligar-se entre eles e com alguns rios que avançam pelas dunas, como o Negro. Com isso, os peixes podem migrar para as lagoas, onde se alimentam de outros peixes ou de larvas de insetos depositadas na areia. Certas espécies, como a traíra, passam toda a estação seca dormentes na lama, só despertando quando recomeçam as chuvas. Na seca, com a evaporação causada pelo calor equatorial, a água pode baixar 1 metro por mês, até que a maioria das lagoas seca completamente, à espera da volta das águas. "Na verdade, pelos critérios técnicos mais rigorosos, os Lençóis não são uma região desértica", diz Cordeiro.
Tal como as dunas e as lagoas, a gente dos Lençóis muda de acordo com a época do ano - além da população dos vilarejos existentes no entorno do campo de dunas, cerca de 90 homens, mulheres e crianças vivem no interior do parque, nos oásis de Queimada dos Britos e Baixa Grande. Na estação seca, os nativos criam galinha, cabra e vaca; cultivam mandioca, feijão e caju; e extraem a fibra de buriti e carnaúba, as palmeiras generosas que brotam nas margens dos alagados. Quando chegam as chuvas, a piscosidade das águas aumenta, assim como o plantio se torna mais árduo. Muitos partem para o litoral, onde vivem da pesca em cabanas improvisadas na praia deserta. Ali salgam e secam a carne do camarupim e de outras espécies para intermediários que, depois, vendem o pescado nas cidades.
O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, que administra os parques nacionais brasileiros, aplica atualmente uma política de populações tradicionais, uma tentativa de estabelecer diálogo e procurar soluções de interesse comum entre as prioridades dos parques nacionais e as pessoas que vivem dentro das áreas protegidas. "Os nativos são importantes, pois preservam um estilo de vida que também é patrimônio, mas é preciso buscar um caminho que permita que esse modo de vida não ameace a biodiversidade local", avalia Carolina Alvite.

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