sexta-feira, 23 de maio de 2014

Um hábito cultural brasileiro e suas consequências

Um hábito cultural brasileiro e suas consequências

O tráfico de animais no Brasil: até onde um hábito nocivo deve ser preservado como patrimônio cultural?

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Juliana Machado Ferreira Planeta Sustentável - /05/2014
Arquivo pessoal

Uma cena comum no Brasil todo, e considerada até bonita por muitos, é a da casinha com gaiolas de passarinhos penduradas para fora. Para muitos, essa cena mostra o amor do dono da casa pela natureza e pelos animais. E na maioria das vezes, o amor é real e a pessoa nem imagina as consequências que estão por trás do simples fato de comprar um passarinho em uma feira-livre. No entanto, devido ao imenso volume do comércio ilegal de animais silvestres brasileiros, esse hábito aparentemente inocente acaba sendo responsável por sustentar uma das maiores ameaças à biodiversidade brasileira.

Atualmente, a demanda por animais silvestres vivos para suprir o mercado de animais de estimação é a modalidade de comércio ilegal que mais incentiva o tráfico de animais silvestres no Brasil. Vale lembrar que espécies da fauna silvestre são diferentes das espécies domesticadas pelo homem há milhares de anos. Para que uma espécie passe a ser considerada doméstica (e não amansada ou domada) é necessário que ocorra seleção de certas características, com diferenciação genética e fenotípica, a ponto de se tornar uma espécie distinta da parental, como ocorreu com gatos, cachorros, bois, porcos, etc.

Como mencionado no artigo anterior, a retirada de muitos animais silvestres de forma regular da natureza, não apenas gera sofrimento animal, mas pode ter consequências ambientais bastante graves, com ameaça de extinções locais ou extinção da espéciecomo um todo, até desequilíbrios ecológicos com consequências econômicas.

Os animais mais procurados pelo comércio ilegal para animais de estimação no Brasil são as aves canoras, papagaios, araras, répteis como iguanas e cobras, e pequenos mamíferos, como saguis e macacos-prego. No entanto, as aves são de longe os maiores alvos do comércio ilegal não só pela enorme demanda – é um traço cultural do brasileiro querer possuir aves de gaiola em casa – mas também por sua riqueza e relativa facilidade de captura.

Apesar de ser uma atividade tão relevante, estimativas confiáveis acerca do volume do tráfico de animais no Brasil ainda são escassas. A principal e mais citada fonte de informação publicada ainda é o 1º Relatório Nacional sobre o Tráfico de Animais Silvestres, lançado em 2002, pela Rede de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres – RENCTAS. Neste relatório, os autores estimaram que todos os tipos de exploração ilegal de animais silvestres seriam responsáveis pela retirada de 38 milhões de animais da natureza brasileira, número que não inclui peixes ou insetos.

Ainda não existe uma estimativa única oficial, mas diversos números de levantamentos de diferentes instituições governamentais, como, por exemplo, o IBAMA e a Polícia Militar Ambiental do Estado de São Paulo, permitem extrapolações que assustam pelo enorme volume de animais ilegalmente retirados, transportados, comercializados e possuídos: segundo um levantamento realizado pelo IBAMA, em 2002, os Núcleos de Fauna e os Centros de Triagem de Animais Silvestres receberam um total de 44.355 espécimes provenientes de apreensões, sendo que destes, 82,71% eram aves, 13,75% répteis e 3,54% mamíferos. Já de acordo com um levantamento realizado pela Polícia Militar Ambiental do Estado de São Paulo com dados referentes ao ano de 2006, apenas naquele ano e somente no Estado de São Paulo, foram apreendidos pela PMA (excetuando-se então apreensões realizadas pelas polícias Civil, Federal, Rodoviária) 30.216 animais, sendo que destes 26.313 eram aves.

Por fim, em uma tentativa de utilizar metodologia científica para quantificar a atividade de venda ilegal de aves em Recife, dois pesquisadores de Pernambuco analisaram oito feiras-livres na região metropolitana e chegaram à conclusão que apenas as feiras analisadas podem ser responsáveis pelo comércio ilegal de 50 mil aves silvestres por ano, movimentando quase 630.000,00 dólares. Obviamente esses valores variam de forma marcada de local para local, mas basta lembrar que o Brasil tem mais de cinco mil municípios que em sua maioria possuem no mínimo uma “feira-de-rolo” (feira-livre onde também são comercializados animais e mercadorias ilegais) para começar a se ter uma ideia da importância desta atividade ilegal, tanto em termos econômicos quanto ecológicos.

Os principais defensores da manutenção de animais silvestres como animais de estimação alegam que este é um traço cultural do brasileiro e, como tanto, deveria ser preservado. Contudo, a meu ver, culturas são dinâmicas e devem evoluir. Obviamente patrimônio cultural valioso como música, dança, histórias, tradições, receitas, ente outros devem ser mantidos. No entanto, costumes claramente nocivos podem e precisam evoluir. Ou alguém argumenta que (guardadas as devidas proporções) escravidão, mulheres que não trabalhavam e não tinham direito a voto, ausência de controle de natalidade, palmadas em crianças, racismo e homofobia deveriam ser mantidos como patrimônio cultural porque um dia fizeram parte dos costumes aceitos em nossa sociedade?

Há uma corrente que propõe que animais silvestres sejam reproduzidos em cativeiro com fins comerciais, o que, de acordo com os defensores desta ideia, não apenas supriria a demanda por animais silvestres de estimação, como criaria uma indústria poderosa, que, entre outros benefícios, criaria empregos, geraria impostos e movimentarias indústrias relacionadas. O argumento é válido e será discutido no próximo texto desta coluna.

Por agora é importante ressaltar que enquanto discutimos o assunto calmamente, milhares de animais sofrem maus-tratos e nossa biodiversidade está sendo erodida severamente e sem retorno.

FONTES
Regueira, R.F.S. & Bernard, E. 2012Wildlife sinks: quantifying the impact of illegal bird trade in street markets in Brazil. Biological Conservation (149): 16-22;
RENCTAS, 2001. 1º Relatório Nacional sobre o tráfico de Fauna Silvestre. 107p.

*Juliana Machado Ferreira é bióloga, com mestrado e doutorado em Genética, Diretora Executiva da Freeland Brasil e colaboradora da SOS Fauna. Nutre uma admiração profunda pela biodiversidade global e um otimismo incorrigível em relação ao futuro da humanidade e de todas as formas de vida. Seu email: juliana@freelandbrasil.org.b
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