segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Araras colorem o sertão azul

REFÚGIOS NA CAATINGA

Araras colorem o sertão azul

Demorou mais de 100 anos para a arara-azul-de-lear ser encontrada na natureza. Agora, pesquisadores tentam preservar as últimas aves existentes no interior da Bahia

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João Marcos Rosa

Às 9 da manhã, o Sol já castiga os poucos que se habilitam a enfrentá-lo na vastidão semiárida da Estação Biológica de Canudos, na Bahia. Abrigada sob uma rara sombra no paredão de arenito, a bióloga Erica Pacifico, acordada desde as 3 da madrugada, bebe um gole d’água, quente a essa altura, e recebe um chamado no rádio. "Tem filhote. Dois", diz o colega Thiago Filadelfo, de dentro de uma toca a 50 metros de altura. Capacete na cabeça, o guia João Carlos Nogueira Neto corre para pegar uma gaiola especial. O equipamento é içado, e logo Filadelfo, deitado de bruços no local escuro e malcheiroso por causa das fezes de morcego, acomoda com cuidado os jovens passageiros, que saíram do ovo depois de quatro semanas de incubação.

Assim que os pequeninos chegam ao chão, Erica tira medidas, pesa, verifica se o papo está cheio e coleta restos de comida do bico, além de retirar amostras de sangue e de fezes de cada um antes de devolvê-los ao ninho. Por causa da pesquisa, que ela começou em 2008, os dois filhotes de arara-azul-de-lear (Anodorhynchus leari) terão muito mais chances de chegar à idade adulta - podem viver até 40 anos - do que se tivessem nascido décadas atrás. Contabiliza-se hoje algo entre 800 e 1,2 mil dessas araras na natureza - eram 200 no começo dos anos 2000. "A primeira parte do trabalho era entender melhor a biologia reprodutiva delas, sobre a qual existiam pouquíssimas informações", conta a bióloga, que constatou, por exemplo, que as araras têm um ou dois filhotes por ano, que demoram em média 95 dias para começar a voar.

Toca Velha, como é conhecido esse hábitat das araras azuis em Canudos, começou a ser resguardada em 1993, quando a Fundação Biodiversitas, organização conservacionista sediada em Belo Horizonte, adquiriu 130 hectares da área, com o patrocínio da médica americana Judith Hart. Além dali, as aves vivem em outros dois pontos da região. Um deles é a Área de Proteção Ambiental Serra Branca, no limite sul da Estação Ecológica Raso da Catarina, distante 37 quilômetros de Canudos. Outro é o Boqueirão da Onça, um grande fragmento de Caatinga entre os municípios de Sento Sé e Campo Formoso, onde apenas dois indivíduos foram avistados nos últimos anos. Nos paredões vermelhos da Toca Velha, no fim da década de 1970, o biólogo alemão Helmut Sick (1910-1991) observou pela primeira vez a espécie na natureza - até então, a arara-azul-de-lear era conhecida apenas por exemplares taxidermizados ou em cativeiro. Era o fim de um mistério de mais de 100 anos, uma das maiores sagas da história da ornitologia.

DESCOBERTAHeinrich Maximilian Friedrich Hellmuth Sick desembarcou no Brasil em 1939 com a missão de coletar aves para o Museu de Zoologia da Universidade de Berlim. Com o rompimento das relações diplomáticas entre Brasil e Alemanha durante a Segunda Guerra, Sick se escondeu na serra do Caparaó, na divisa dos estados de Minas Gerais e Espírito Santo, mas acabou sendo descoberto e encarcerado em 1942. Impossibilitado de estudar aves nos quase três anos que passou detido na Ilha Grande, no Rio de Janeiro, começou a observar invertebrados, formando uma coleção de 24 espécies de cupim, 11 delas inéditas.

Àquela época, ainda era desconhecida a origem da arara de cor índigo, de 70 centímetros de comprimento, 20 a menos do que sua parente mais conhecida, a arara-azul-grande (A. hyacinthinus). Os registros científicos atribuíam seu lar à Amazônia, provavelmente porque era do porto de Belém que os animais saíam para serem vendidos no exterior, junto com as "primas" amazonenses. A espécie havia sido descrita em 1856 por Charles Lucien Bonaparte, com base em uma pele depositada no Museu de Paris e em um animal vivo do Zoológico da Antuérpia. Bonaparte, sobrinho do imperador Napoleão, homenageou o artista inglês Edward Lear, um amigo que, em 1832, publicara em um dos volumes de sua obra Illustrations of the Family of Psittacidae, or Parrots uma ilustração da espécie.

No livro, porém, Lear descreve a ave como sendo uma arara-azul-grande. "Ele certamente notou a diferença entre a arara que havia pintado e representantes legítimos de A. hyacinthinus, que sem dúvida também observou. No entanto, sem autoridade para batizar uma nova espécie, teve que aceitar as diferenças encontradas como variações naturais, como o fizeram também inúmeros de seus contemporâneos", escreveu Sick.

Quando a ave foi reconhecida como nova espécie, Lear já havia abandonado as ilustrações detalhadas de animais para pintar paisagens por causa de uma perda parcial da visão. Mais tarde, o artista se dedicaria à poesia. "Infelizmente, nenhuma carta ou diário sobreviveu para revelar a reação de Lear à homenagem que lhe fora feita. Naquela época, ele estava vivendo e viajando fora da Inglaterra e seu foco era muito mais a pintura de paisagens do que a ornitologia", diz Robert McCracken Peck, estudioso de Lear na Universidade Drexel, nos Estados Unidos.

Depois de sair da prisão com o fim da guerra, Sick se tornou naturalista da Fundação Brasil Central, tendo coletado diversas espécies e descoberto outras enquanto viajava pelo Xingu com os irmãos Villas Bôas. Em 1965, já como pesquisador do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, Sick leu um artigo no qual o ornitólogo holandês Karel Voous afirmava que a espécie não existia de fato: os exemplares existentes eram híbridos de arara-azul-grande e arara-azul-de-glauco (A. glaucus), espécie já extinta, de menor tamanho entre as três desse gênero. O que o holandês não sabia era que Sick já tinha pistas de que o animal vinha de algum lugar no baixo rio São Francisco graças a relatos de outros ornitólogos.

Depois de três expedições nos anos 1970, em 29 de dezembro de 1978, o veterano cientista e os iniciantes Dante Martins Teixeira e Luiz Pedreira Gonzaga, seus alunos no Museu Nacional, chegaram a Euclides da Cunha, para onde as evidências apontavam ser a morada mais provável da espécie. "A gente procurava gaiola pendurada na porta das casas, sinal de que ali tinha gente interessada em ave", diz Gonzaga, hoje professor do Instituto de Biologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, assim como Teixeira.

O dono de uma farmácia, colecionador de passarinhos, levou os pesquisadores para conhecer um fazendeiro que poderia ter informações. Enquanto falavam com ele, um homem que ouvia a conversa se manifestou. "Eu matei uma dessas uns dois meses atrás", teria dito Elizeu Pereira Alves, o Maninho. Minutos depois, ele voltava com as penas que tinha guardado. À noite, Sick, então com 68 anos e sofrendo com duas hérnias que fizeram seu médico proibi-lo de fazer aquela viagem, havia montado a cauda completa do animal. Ele estava perto.

Maninho levou a equipe até o então distrito de Cocorobó. "Ao final da tarde de 31 de dezembro, vimos à distância três araras azuis que se dirigiam ao dormitório", escreveram os pesquisadores anos depois. Gonzaga conta, porém, que naquele momento Sick ainda não tinha se dado por satisfeito. Só no primeiro dia de 1979 é que eles avistaram com clareza as araras. Ainda olhando pela luneta, o alemão levantou um polegar para Gonzaga e Teixeira. Era, com certeza, a arara-azul-de-lear. Depois de quase 30 anos de busca, essa era a maior manifestação de felicidade que a dor das duas hérnias permitia ao cientista.

PROTEÇÃO Na volta para o Rio de Janeiro, Sick tratou de contatar as autoridades ambientais federais e alertar para a necessidade de proteger a área. Em alguns meses, Maninho, que o guiou até as araras, seria nomeado guarda-parque da região. O trabalho se revelaria intenso: àquela época, estimava-se haver por volta de 40 araras na Toca Velha e o tráfico de aves corria solto. "Meu pai não podia ver gaiola com passarinho que ele pegava para soltar. Com ele, não tinha conversa", lembra Dorivaldo Macedo Alves, 49 anos, o filho mais velho de Maninho, falecido em 1998. Dorico, como é mais conhecido, e seu irmão caçula são dois dos três guarda-parque atuais da Estação Biológica de Canudos.

Dorico me apresenta Aderbal Nascimento de Farias, que acompanhou seu pai na busca derradeira de Sick pela arara-azul-de-lear. "Naquela época, a gente chamava o bicho apenas de arara. Não sabia que era azul", conta Farias. "Como elas não deixavam chegar perto, de longe, pareciam ter a cor verde." O sertanejo se lembra bem da parte da viagem em que a equipe passou pela Serra Branca. Diferentemente da Toca Velha, onde a vegetação é degradada por causa dos bodes e das cabras que circulam livremente, ali só entra gado quando algum vizinho derruba a cerca. Andando em alta velocidade em uma picape na estreita estrada arenosa - o único jeito de não ficarmos atolados -, não vejo o que há por trás da mata homogênea, que inclui facheiros, mandacarus e licuris. Essas espécies fornecem a maior parte da alimentação das araras.

CONSERVAÇÃOQuem garante a conservação da Serra Branca com mão de ferro é o fazendeiro Otávio Manoel Nolasco de Farias, que nos conduz aos dormitórios das araras. Aqui só entra quem ele permite. Embora o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) alegue que os paredões estejam dentro da Estação Ecológica Raso da Catarina, Nolasco afirma que a terra é dele e garante fazer sua parte. "Meus inimigos me chamam de coronel, mas a minha única causa é a conservação", costuma dizer. Ele me recebe em uma de suas fazendas, onde há pouco tempo plantou uma área com milho e licuri apenas para as araras. O apetite delas pelo cereal, porém, deixa outros agricultores furiosos. Um bando faminto pode acabar com uma plantação inteira. Um programa de compensação por lavouras perdidas, criado há alguns anos, não foi para frente, o que pode ser uma ameaça à espécie. Erica suspeita que a inclusão do cereal na dieta delas se deva à falta de licuri na região, derrubado para dar lugar a pastos e lavouras.

Uma vez por ano, Nolasco abre os portões de sua fazenda para o Cemave, órgão do ICMBio responsável pelo monitoramento dos animais, fazer a contagem das araras. Erica diz, no entanto, que o ideal seria que isso fosse feito quatro vezes mais: contar araras exige uma complexa mistura de matemática e zoologia, que precisa ser feita com frequência para obter estimativas mais precisas. Para saber o tamanho da população, considera-se que 25% dela é composta de adultos em idade reprodutiva. Não é fácil reconhecer os casais. Embora levem em média oito anos para atingir a maturidade sexual, as aves começam a voar em duplas bem mais cedo e chegam até mesmo a se comportar como se estivessem copulando. "Não se sabe por que elas agem assim", diz Erica. A solução é observar os ninhos. Para ser considerado ativo, é preciso que haja atividade nele por três dias, com pelo menos um dos membros do casal permanecendo no lugar. "É sinal de que eles estão protegendo filhotes ou ovos." Depois desse tempo, enfim sabe-se quem são os adultos reprodutivos e, como consequência, o tamanho da população.

Um próximo estágio da pesquisa é descobrir em que momento da história a variabilidade genética da população caiu. "Vamos tentar entender se esse momento coincide com algum evento, como uma grande seca ou mesmo a Guerra de Canudos", exemplifica Erica. Além disso, a bióloga vai poder saber o quanto a população é viável no longo prazo. "Como é um grupo pequeno e localizado, provavelmente está se reproduzindo entre si, o que é prejudicial à sobrevivência da espécie", diz. Por isso, conservar o hábitat e permitir que as aves se espalhem é fundamental. Erica pretende marcar de dez a 20 indivíduos da Toca Velha com transmissores que emitem sinais via satélite. Assim, poderá saber com precisão onde eles se alimentam, um dado fundamental para definir áreas prioritárias para a conservação.

Seria emocionante voltar em alguns anos e ver mais araras colorindo a Caatinga de azul. No entanto, é hora de partir. Em meu último dia na Toca Velha, não vejo as aves no céu. Apenas empacoto roupas e equipamentos e me despeço da equipe de pesquisa. Pela primeira vez durante toda a viagem, não acordo de madrugada para ir até os dormitórios das araras, a pé ou a bordo da velha picape Bandeirante conduzida por Dorico, parecida com a que Sick rodou pelos sertões nordestinos até chegar a Canudos. A história está viva. Que assim permaneça
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