domingo, 5 de janeiro de 2014

ABASTECIMENTO DE ÁGUA

Invasão silenciosa no Lago Paranoá

Em cinquenta anos, as margens do Paranoá encolheram 15%. Mas há boas notícias também para o futuro do nosso lago: pelos planos oficiais, a partir de 2016 ele pode se converter em fonte de água potável

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Lilian Tahan Veja Brasília 

FOTOS: Beto Barata / BRASÍLIA SUBMERSA / DIVULGAÇÃO

Foi o botânico francês Auguste Glaziou quem primeiro vislumbrou, em 1894, o imenso potencial da profusão de nascentes, córregos e rios na região do Planalto Central onde, 66 anos depois, se ergueu Brasília. O naturalista europeu integrava a missão Cruls, grupo de especialistas encarregado de buscar uma área adequada para construir uma grande cidade. A descrição deixada pelo estudioso para a posteridade anteviu o cenário que apareceria muito tempo depois em pleno cerrado: "Além da utilidade de navegação, a abundância de peixe, que não é de somenos importância, e o cunho de aformoseamento que essas belas águas correntes haviam de dar à no­va capital despertariam certamente a admiração de todas as nações". Décadas depois, a previsão de Glaziou se tornou realidade com o surgimento, no fim dos anos 50, de um dos símbolos mais fortes da aguardada cidade: o Lago Paranoá.

A cor esmeralda das águas represadas dos rios admirados pelo botânico francês é coerente com as riquezas acumuladas no maior reservatório do Distrito Federal. Os 40 km² do lago artificial transformaram-se em fonte de lazer, umidade, energia e multiplicação de dezenas de espécies animais e vegetais. Muitas originárias da própria região. Outras trazidas de diversos pontos do Brasil ou do mundo.

Abastecido por 21 córregos de cinco bacias diferentes, o Paranoá em breve poderá se tornar fornecedor de um bem precioso para quem vive na capital. Pelos planos oficiais, a partir de 2016 o lago também vai se converter em fonte de água potável para 600 mil pessoas, contingente superior à população prevista para a cidade no projeto original.

A despeito do crescente aumento de sua importância, o reservatório que abraça Brasília encolheu nas últimas décadas. Essa relação inversamente proporcional é considerada um risco de efeitos devastadores em caso de negligência dos moradores e, principalmente, das autoridades do DF. Desde que os rios foram represados, em 28 de setembro de 1959 (há exatos 54 anos), uma área gigantesca ficou alagada e uma onda de prosperidade se formou no coração da capital. Ao mesmo tempo, iniciou-se uma ação contrária. Em um movimento contínuo, a pressão urbana força as margens e come o Paranoá pelas beiradas.

Exposto a um ininterrupto processo de assoreamento, o reservatório já perdeu 15% de seu tamanho inicial. Mais de dois km de seu espelho-d’água deixaram de existir. Projeções mais catastróficas feitas por especialistas advertem que, se nenhuma providência for tomada, em 300 anos esse oásis poderá virar uma miragem. O cenário desalentador ganha contornos mais dramáticos nas previsões do secretário de Meio Ambiente do Distrito Federal, Eduardo Brandão. "Esse tempo será mais curto, porque a cidade hoje cresce em ritmo muito mais frenético do que há vinte anos", acredita o ambientalista, também presidente do Partido Verde no DF. O lago, evidentemente, não vai secar, mas nenhum especialista ouvido por VEJA BRASÍLIA deixou de ressaltar os perigos do processo de desgaste do Paranoá.

Diretor da Agência Reguladora de Águas, Energia e Saneamento do Distrito Federal (Adasa), o geólogo Diógenes Mortari confirma que o aumento da população e o incremento das construções provocaram impacto direto no seu uso. A ponto de a Adasa, em conjunto com outras empresas do governo, como a Companhia de Saneamento do DF (Caesb) e a Companhia Energética de Brasília (CEB), ter de controlar sistematicamente a cota de água. Uma régua de medição revela o grau de gravidade do nível do reservatório. No estágio amarelo, significa atenção. No vermelho, determina que a vazão de água deve ser proibida. "O crescimento urbano explodiu, mais pessoas passaram a se valer do lago e então começaram os conflitos", diz Mortari.

O diretor da Adasa não acredita no desaparecimento, mas admite que as pontas atingiram um nível preocupante de assoreamento, nome técnico do acúmulo de sedimentos no fundo. "Em termos de volume é algo pequeno, mas, se olharmos os braços do lago, veremos um excesso fora do comum."

Diante desse cenário, a Adasa também passou a fazer o controle da drenagem pluvial por meio de bacias de contenção e de caixas de decantação, capazes de filtrar as águas que correm para o Paranoá. Cuidados como esses se tornaram obrigatórios para os novos empreendimentos da cidade. O procedimento ajuda a reverter o assoreamento associado à urbanização, que impermeabiliza o solo e impede a penetração de água no lençol freático. Mas isso não é suficiente para estancar o problema. Em um programa chamado Caminho das Águas, técnicos do governo percorrem o trajeto inverso ao do curso dos ribeirões que abastecem o lago do DF. Cada uma dessas veias de água será replantada com mata ciliar, medida cujo objetivo é reter boa parte dos sedimentos antes que eles cheguem à barragem.

O projeto está sendo custeado por meio de compensação ambiental paga pela Companhia Imobiliária de Brasília (Terracap), responsável por boa parte das recentesintervenções urbanas na capital. Dragar, ou cavar a terra das bordas do lago, é mais uma medida na contramão do processo de encolhimento da represa do DF, mas sua eficiência é questionada pelas próprias autoridades. "Quando vieram falar em dragar o Paranoá, eu fui o primeiro a dizer que compraria uma máquina, pois isso me renderia lucros até a quarta geração. Não resolve", afirma o secretário Eduardo Brandão.

Manter a extensão do Paranoá e o volume de águas é um desafio tão grande quanto o que enfrentaram gestores e ambientalistas no fim da década de 70. Na ocasião, o Paranoá chegou a ter quase 100% de poluição. A represa passou a ser depósito de águas servidas, processadas em nível secundário, ou seja, sem a remoção completa dos poluentes.

Naquela época ainda não havia no Brasil estação de tratamento de esgoto terciário, aquela na qual fósforo e nitrogênio são removidos. Em 1978, o excesso desses compostos orgânicos, conhecido como eutrofização, ocasionou a mortandade de milhares de peixes. "Era um cheiro insuportável, e o Paranoá passou a ser associado à poluição e à sujeira, marcas que levaram anos para ser desfeitas", lembra Fernando Starling, Ph.D. em ecologia aquática aplicada pela Universidade de Stirling, na Escócia.

Funcionário da Caesb, Starling é um dos maiores conhecedores do Paranoá. Ele participou de várias frentes do programa de despoluição do lago. A reversão das condições impróprias foi um sucesso e virou referência no mundo.

O nível de pureza conquistado a partir do fim da década de 90 encorajou estudos sobre a captação de água do lago para consumo. Tal projeto partiu das evidências de que os cinco sistemas que abastecem o DF (Descoberto, Torto, Santa Maria, Cabeça de Veado e Pipiripau) estavam em seu limite máximo. "Era preciso trazer água de outras fontes", diz Antônio Luís Harada, técnico que assessora a diretoria de engenharia da Caesb.

Segundo Harada, Corumbá IV, ainda em obras, foi a solução encontrada para garantir água ao sul do DF, embora ainda faltasse atender a população que vive mais ao norte da capital. O Rio São Bartolomeu surgiu como uma possibilidade, mas o abastecimento via Paranoá se mostrou mais central e viável. A captação se dará próximo à Ermida Dom Bosco, onde haverá uma estação de tratamento junto ao Parque Bernardo Sayão, pouco acima da QI 27 do Lago Sul. Dois conjuntos de tubulação, com braços de adutoras, chegarão a Sobradinho, Paranoá, Taquari e região do Grande Colorado.

Estima-se que sejam atendidas 600 mil pessoas com o novo sistema, a uma vazão de 2 100 metros cúbicos por segundo. "Não é a captação que vai afetar o nível do lago", assegura Harada. Ele informa que a barragem, já em grande parte despoluída, será submetida a um sistema moderno de tratamento de água, que inclui a decantação, a flotação, a filtração e a desinfecção ultravioleta.

Os editais para o sistema de captação serão lançados ainda neste ano. As obras, orçadas em 418 milhões de reais, têm início previsto para 2014. Se o plano for posto em prática, o sistema ficará pronto até 2016. Então, finalmente, o conteúdo verde-esmeralda do Paranoá será encanado para servir a milhares de moradores do DF. Pelo que se conhece dos grandes projetos públicos, no entanto, até tudo ficar pronto muita água ainda vai rolar
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