terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Ciberativismo

Ciberativismo

Como a internet reconfigura o ativismo social, ampliando seu alcance e colocando pautas no centro do debate público – e quais os limites do ciberativismo.
Nos últimos meses de junho e julho, brasileiros de todas as idades, cores, crenças, partidos e gêneros marcharam suas mágoas cívicas sobre o asfalto de mais de 320 cidades do País. Nem coquetel molotov, nem pedras, nem vinagre. A arma mais poderosa que cada um carregava consigo era o smartphone. Com a internet inteira no bolso e o palanque das mídias sociais a um clique, ativistas germinados no Facebook deram as mãos a militantes com anos de asfalto para escrever um novo capítulo de nossa história. Valendo-se da capilaridade das redes sociais, conseguiram amplificar, além de pleitos e reivindicações, um debate sobre o futuro da mobilização social em tempos de internet.

Não foi só por vinte centavos, avisaram os cartazes. Foi para inaugurar um jeito novo de exercer a cidadania, que alguns já começam a chamar de ciberativismo. “A internet leva um número maior de pessoas a se manifestar, sem que haja a necessidade de estarem vinculadas a alguma organização mais formal. Assim, há um empoderamento dos indivíduos, dos cidadãos”, diz o cientista político Túlio Velho Barreto, da Fundação Joaquim Nabuco, centro de pesquisas sociais e culturais do Recife, Pernambuco, ligado ao Ministério da Educação.

A primeira explicação para tanta mobilização, na avaliação de Túlio, é meramente matemática. Em condições normais de temperatura e pressão social, lembra, a população de brasileiros já é tida como a que mais cresce entre os usuários de Facebook do mundo. Só em 2012, segundo pesquisa realizada pela consultoria SocialBakers, foram mais de 29 milhões de novas adesões. Hoje em dia, já somos os que mais usam smartphones para navegar em redes sociais, à frente dos habitantes dos Estados Unidos, da Rússia, da Índia e da China, de acordo com a empresa de pesquisas Nielsen. Cada internauta, de acordo com o relatório Brazil Digital Future in Focus, da empresa de pesquisa de mercados virtuais comScore, passa, em média, 27 horas por mês online – a maior parte delas conectado a redes sociais. Simplesmente a média mais alta de toda a América Latina.

Apesar de seu comprovado entusiasmo online, não foram os brasileiros que descobriram o poder das mídias sociais para fins revolucionários. “Os primeiros e mais importantes movimentos sociais que se valeram da internet para se organizar foram o Ocupe Wall Street, nos Estados Unidos, Os Indignados, na Espanha, e a Primavera Árabe, no Oriente Médio”, diz Túlio Velho Barreto (saiba um pouco mais sobre esses movimentos clicando aqui). Cada um com suas motivações, mas todos, na avaliação do sociólogo catalão Manuel Castells, um dos maiores especialistas em ciberativismo do mundo, sintomas inequívocos de amadurecimento coletivo. Para Castells, essas insurreições populares são um ponto de inflexão na história social e política da humanidade.

No livro Redes de Indignação e Esperança (Editora Zahar), Castells dedica o posfácio, datado de julho de 2013, às passeatas brasileiras e tudo que elas desencadearam em nossa sociedade. “De forma confusa, raivosa e otimista, foi surgindo a consciência de milhares de pessoas, que eram, ao mesmo tempo, indivíduos e um coletivo, pois estavam – e estão – sempre conectadas em rede e enredadas na rua, mão na mão, tuítes a tuítes, post a post, imagem a imagem”, diz, para depois acrescentar que o emponderamento dos cidadãos é irreversível. Assim como a “autonomia comunicativa” dos jovens. “Tudo que sabemos do futuro é que eles o farão. Móbil-izados.”

Na avaliação do universitário Pedro Joseph, do Movimento Passe Livre, entidade “autônoma, apartidária e independente” que protagonizou os protestos recentes pelo País, a maior contribuição política da web no Brasil foi dinamizar modelos tradicionais de representação e mobilização. “O que antes levava quatro, cinco, seis reuniões presenciais para ser debatido, hoje é definido em discussões que travamos permanentemente em fóruns virtuais”, diz o integrante do movimento, criado em 2006, em Florianópolis, Santa Catarina, para lutar por um transporte público gratuito e de qualidade. Como as ruas mostraram durante aqueles dois intensos meses, diz Pedro, os movimentos sociais estão menos burocráticos e mais produtivos com o advento do que Castells chama de “sociedade em rede”, que se auto-organiza e auto-mobiliza, superando as barreiras da censura e da repressão historicamente impostas pelo Estado. “Movimento social começa a ser um conceito horizontal e efetivamente coletivo”, diz Joseph.

O cidadão comum, por sua vez, passa a ter acesso amplo e – quase – irrestrito a todo tipo de informação em tempo real, a partir de ângulos distintos, e acaba quedando-se, pelo menos potencialmente, mais politizado. “As pessoas despertaram para o fato de que é possível e necessário reivindicar. Perceberam que somos, sim, sujeitos políticos. Por isso estamos, enquanto povo, migrando da postura reativa para a propositiva. Tudo isso desencadeado, de certa forma, pela internet”, avalia o ativista do Passe Livre.

Mas não basta estar online. Segundo o jornalista Ivan Moraes Filho, do Centro de Cultura Luiz Freire, ONG de direitos humanos com foco em educação, cultura e comunicação sediada em Olinda, Pernambuco, a internet é só uma ferramenta eficiente. “Ela é meio. Nunca fim. Pode ser fundamental para uma articulação, mas pode atrapalhar pelo excesso de informação, de boa e de má qualidade”, pondera. Para Ivan, as redes sociais serão cada vez mais utilizadas nessa perspectiva política, mas é um erro acreditar que elas são um caminho que conduz inevitavelmente ao esclarecimento e à liberdade de opinião. “A maioria [das redes] são empresas privadas com normas rígidas de conteúdo – e até de censura”, diz Ivan, que lembra ainda outro dois fatores que podem amenizar o entusiasmo cibercidadão: nem todo brasileiro tem interesse em virar ativista, seja “de sofá” ou de carteirinha. E nem todo brasileiro tem acesso à internet.

Segundo estimativa divulgada no último mês de agosto pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população brasileira ultrapassou o patamar de 200 milhões de habitantes. Dos quais cerca de 100 milhões, segundo o Ibope, tem acesso regular à internet: de casa, do trabalho, do celular ou da lan house.

É gente suficiente para operar uma revolução de paradigmas cívicos, afirma, categórico, o professor, mestre e doutor em comunicação e culturas contemporâneas Bruno Nogueira. “Estamos redescobrindo, na internet, o sentido de democracia e de cidadania” diz. Um fluxo histórico inevitável que, assegura, não começou nas passeatas, mas bem antes, quando o conceito de comunidade foi, coletivamente, “hackeado”. “Como estamos todos conectados, fica mais fácil ter acesso a conhecimentos que antes eram restritos a certos grupos. Em termos práticos: a internet nos ajudou a construir um novo sentido de comunidade. Algo que [o filósofo francês] Pierre Lévy chama de comunidades de conhecimento, mais fundamentadas por afinidades ideológicas que por referências geográficas ou físicas propriamente ditas.” A partir dessa lógica “ciberplanetária”, diz Nogueira, só uma “ciberdemocracia” poderia fazer sentido.

E embora haja os que acusem a internet – e as redes sociais em particular – de ser uma seara infértil em termos de reflexão crítica, mais propícia a mobilizações políticas superficiais, Lola Aronovich, doutora em Literatura pela UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e autora do blog Escreva Lola Escreva, que trata de feminismo e cidadania, rebate: “Pelo contrário, ela tem o potencial de nos fazer acordar.” Militância virtual, defende, funciona, sim. E mobiliza mais e melhor que qualquer panfletagem. “Se houve uma coisa que as ruas nos ensinaram este ano é que havia muita gente jovem que nunca tinha participado de uma manifestação e estava morrendo de vontade de fazê-lo. E ainda há.”

Poder público
Se os cidadãos estão descobrindo poder, força e representação na rede, os governos não haveriam de manter-se offline. Em setembro, um importante passo foi dado pelo Governo Federal em direção ao ciberespaço: a reformulação do Portal Brasil, agora com direito até a perfil no Facebook. “Nossa ideia é mudar o governo de analógico para digital”, disse a presidente Dilma Roussef, na cerimônia de estreia do serviço, realizada no Palácio do Planalto. A estratégia, explicou, é ampliar a oferta de serviços e informações disponibilizados pela web aos cidadãos, além de garantir uma maior participação da população na tomada de decisões. “Queremos construir uma prática sistemática de ouvir as ruas, o que querem as universidades, o que querem as pessoas do campo, dos diferentes segmentos sociais, e ouvir as redes sociais, ter com elas uma interação.” Uma política que ela batizou de Gabinete Digital. O governo também apostou numa rede social própria. Lançado em julho deste ano, na ressaca pós-protestos, o chamado Participatório da Juventudedestina-se a discussões e debates de cunho cívico. “A rede é baseada em três pilares: a institucionalização de um mecanismo de participação política dos jovens, a produção conjunta de conteúdo e o fomento de espaços de mobilização virtuais”, explica Carla Bezerra, uma das responsáveis pelo projeto. “Colaboração, afinal, é a essência da web 2.0”.

Além de estabelecer canais de comunicação, muitos governos estão tratando de prestar contas na internet. A tendência dos chamados dados abertos ganhou o mundo a partir dos Estados Unidos, quando Barack Obama, há exatos quatro anos, assinou um documento institucionalizando a transparência como política pública. A partir daí, passou a disponibilizar na web um volume enorme de dados públicos sobre os mais variados aspectos da sociedade americana, como saúde e educação. No Brasil, essa política de democratização virtual de estatísticas, institucionalizada pela Lei de Acesso à Informação, de 2011, teve dois principais desdobramentos: o Portal Brasileiro de Dados Abertos, que conta com mais de mil bases de dados, e o Portal da Transparência, ambos lançados em 2012.

Mas o Governo Federal não está online sozinho. Vários estados e prefeituras também caíram na rede para prestar serviços. Só em Pernambuco, segundo levantamento da consultoria digital Le Fil, 100 dos 185 municípios pernambucanos estão devidamente representados na web. No Twitter, 31 prefeituras marcam presença. No Facebook, 96. E no Youtube, 13.

Abrir uma conta institucional, porém, é apenas o primeiro passo. “A eficácia dessas plataformas para o poder público depende da realização de três fases: estar presente, ou seja, postar ações e projetos políticos; ter uma personalidade digital, com grade de conteúdo, monitoramento e análise; e responder às demandas da população. Nenhum município pernambucano conseguiu ainda sair da primeira”, diz a diretora executiva da Le Fil, Socorro Macedo.

Além disso, disponibilizar tabelas e números brutos na internet não significa, necessariamente, esclarecimento da população, que nem sempre é capaz de decifrá-los. É aí que entra outra boa arma do ciberativismo: os hackathons. Maratonas de programação computacional, essas competições tecnológicas vêm sendo usadas para estimular os participantes a desenvolverem aplicativos que transformem os sisudos dados disponibilizados pelos governos em algo mais palatável, acessível e, portanto, efetivo para a comunidade. “É uma forma de nos apoderarmos e pensarmos juntos em soluções, literalmente, para o País”, diz Kiev Gama, da Universidade Federal de Pernambuco, um dos idealizadores do Cidade Inteligente, primeiro grande hackathon em curso naquele estado, concebido à imagem e semelhança dos que já foram realizados em São Paulo e no Rio de Janeiro. “Todo mundo sai ganhando em cidadania.”

Os dados abertos também são uma bandeira do “hackerativista” Pedro Markum. “É preciso abrir a caixa preta do sistema. Descobrir como ele funciona para poder subverter toda lógica que oprima. Enquanto não dominarmos esses trâmites burocráticos, seremos sempre dominados por eles”, diz Markum, que fundou, em 2010, uma comunidade de desenvolvedores cidadãos, a chamada Transparência Hacker, que hoje já conta com mais de 800 pessoas empenhadas em melhorar o País “com código, com tecnologia e com inteligência”. O grupo já disponibilizou na internet, entre muitos outros produtos, um clone do Blog do Planalto aberto à participação do cidadão e o site Jogo da Vida do Processo Legislativo, onde todo e qualquer cidadão pode pesquisar a quantas anda o trâmite de vários projetos de lei. A comunidade conta até com uma unidade móvel, batizada de Ônibus Hacker, que circula pelo Brasil, desenvolvendo para melhorar o País.

Para Pedro, não faz mais sentido discutir se a internet ajuda ou não a garantir cidadania. “Não é que eu acredite que a web seja capaz de transformar a sociedade. Estou vendo isso acontecer. A música, o cinema, o jornalismo. Tudo foi impactado. Porque a política não seria? A lógica é a mesma: é preciso acabar com a indústria da intermediação. E a política representativa como a conhecemos hoje não deixa de ser uma representação.” Hoje em dia, garante, todo mundo tem que ser um poucohacker para ter direito a autonomia.

Limites
Definir os limites do ciberativismo, projeta Jô Gamba, do Movimento Nacional dos Direitos Humanos, é o desafio da sociedade brasileira agora. “Não temos como abdicar completamente da mobilização tradicional, corpo a corpo”, pondera.Rosane Bertotti, da Central Única dos Trabalhadores (CUT), uma das entidades responsáveis por cunhar o conceito de sindicalismo no País, concorda. Para ela, não basta postar, curtir e compartilhar. Ativismo, diz, só se faz de verdade no mundo real. “Internet ajuda, mas precisa ser encarada como um meio. Não como fim.”

Websites, provoca Pedro Joseph, do Movimento Passe Livre, não sentam à mesa para negociar. “Por isso essa filosofia do movimento pulverizado, sem representação nem liderança, tem que ser vista com bastante cuidado”, diz o ativista. Para Manuel Castells, o que mudou essencialmente do sindicalismo ao ciberativismo na mesa de negociação é a substituição do conceito de liderança pelo de representação. “Por serem uma rede de redes, eles podem se dar ao luxo de não terem um centro identificável, mas ainda assim garantir as funções de coordenação, e também de deliberação, pelo inter-relacionamento de diversos grupos. Desse modo, não precisam de uma liderança formal, de um centro de comando ou de controle, nem de uma organização vertical.” Essa estrutura descentralizada, defende, maximiza as chances de participação no movimento, que consegue seguir se reconfigurando de acordo com o nível de envolvimento da população em geral.

O próximo passo é encontrar o equilíbrio entre o digital e o analógico, garante Pedro Joseph. “Só offline, com os pés bem fincados no chão, conseguiremos mudar o mundo.”

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