quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Uma cidade é uma cidade...é uma paixão. (Londres)

Uma cidade é uma cidade...é uma paixão. 

Por que amo tanto Londres? Somos tolerantes com umas cidades e intolerantes com outras. O que explica isso é...não sei. DE LONDRES 



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Os parques londrinos, bem no meio da cidade, são insuperáveis. Um luxo. Como o Hyde Park (Foto: Ruth de Aquino)
É sempre assim quando chego a Londres, de trem ou avião. A ternura me invade quando vejo os parques que mudam de cor com as estações, as casas de tijolinho e as bay-windows, as chaminés ativas ou não, as nuvens que dançam com o vento da ilha, os punks e as velhinhas, os patos de cabeça verde e os imensos cisnes contorcionistas nos lagos, os gatos bem nutridos nas ruas, os pubs exibindo jardineiras tão floridas que chegam a ser kitsch, o Tube (metrô) com trens antigos e novos, todos coloridos.

O cisne contorcionista (Foto: Ruth de Aquino)

Em fila, organizadas. Até as aves são assim. (Foto: Ruth de Aquino)
Os indianos, os jamaicanos, os africanos, os árabes - e até os ingleses - misturados nos ônibus vermelhos de dois andares. Os shows ao ar livre. A pint Guinness na pressão, tirada aos poucos, cremosa. A imprensa metendo o pau no filme sobre a princesa Diana com a Naomi Watts. Ou fritando a nova namorada do príncipe Harry. O frisson com a volta do seriado Downton Abbey, no último domingo. A moda de rua, criativa e doida como só ali, num país que não se curvou ao euro e chama "a Europa" de “o continente”. E também dirige do outro lado da rua.
Cidades, todas elas, são aglomerações. De ruas, casas e pessoas. O que nos faz amar algumas cidades quase incondicionalmente? Por que somos tão tolerantes com umas, tão exigentes com outras? O vento e a chuva são só detalhes numa. São insuportáveis em outra. Na cidade-paixão, o metrô cheio nos faz observar os outros, escutar os diálogos, esquecer a vida num livro ou pensar em pessoas queridas. Na outra cidade, aquela que a gente não ama, o metrô cheio nos faz maldizer a vida, os minutos tornam-se eternos e os olhares parecem hostis.
Fui para Londres quando tinha 22 anos. Fui mesmo, por três anos. A paixão foi at first sight, à primeira vista. Formada em inglês americano, não entendia uma palavra do que se falava. Reaprendi na casa de um professor inglês que detestava os Tories (conservadores), votava no Labour (os trabalhistas), morava em West Hampstead, tinha um gato e vestia um suéter puído,  mais por gênero do que por necessidade.
Trabalhei no serviço brasileiro da BBC num tempo em que se editava fita de entrevista com gilete, colando com fita adesiva fininha. Um trabalho manual anulando tosses, hesitações e redundâncias dos entrevistados. Falando ao vivo de madrugada (noite no Brasil). Morei no Norte de Londres, em Hampstead, onde Freud também deixou uma casa que hoje é museu. E perto de onde Marx foi enterrado.
Ainda havia fog das chaminés e as luzes dos lampiões eram todas amarelas, como nos filmes de Hitchcock. Tive um gato preto de olhos verdes que se chamava “gato” (gá-ttou) – um nome que o veterinário me pediu para soletrar (dgi-ei-ti-ou) e que ele achou "exótico" por desconhecer o significado.
Chá earl grey com leite sem açúcar passou a ser um hábito vespertino para sempre, em qualquer lugar que eu estiver no mundo. Tea é melhor acompanhado de scones, bolinhos com passas.
Fiz dança moderna e teatro com uma professora austríaca que tocava piano, adorava a Bahia e o som da cuíca. Cortava caminho atravessando um parque para ir dançar, antes de saber pelas colegas do risco de estupros em parques desertos. Procurava orelhões enguiçados para telefonar à família no Brasil – era só ver a fila de estrangeiros para saber que, naquela cabine, não precisava gastar nenhum penny em telefonema internacional.
No inverno, a escuridão me surpreendeu, mais que o frio. Escorreguei no gelo na ladeira em frente de casa, tive tanta dor nas costas que a médica diagnosticou erradamente meningite ou “alguma doença tropical” por eu ser brasileira, mas o problema era o casaco pesado de lã de carneiro comprado de segunda mão na feira de Portobello. A greve de mineiros e de lixeiros sacudiu o país. Margaret Thatcher foi eleita após “o inverno do descontentamento”. 
Na primavera e no verão, tomava sol de calcinha e sutiã no jardim perto da BBC com outras moças, no intervalo do almoço. E nadava nos lagos frios. Vi Hair, vi Bolero com a trupe do Béjart, comandada pelo estupendo bailarino Jorge Donn, vi a primeira montagem de The Wall com Pink Floyd. Tirei carteira de motorista britânica, viajei o país inteiro num Austin azul-marinho, dormindo em B&B (bed and breakfast), comendo English breakfast e porridge, o mingau de aveia deles. No outono, brincava de chutar as folhas amarelas, vermelhas e rosas e alimentava os esquilos.

Lendo The Guardian (Foto: Arquivo pessoal)
Muito mais aconteceu na minha primeira estada em Londres e não daria para contar num post. Você se cansaria de ler. Os ingleses me chamavam e me chamam até hoje de “darling” (os taxistas) – tão diferente de Paris! Adorava ser jornalista em Londres. O inglês dá entrevista com muito mais facilidade e profissionalismo do que o francês. Costumava achar que a cidade tinha os piores e os melhores jornais do mundo, vendidos na boca do metrô.
Na primeira volta ao Brasil, em 1980, com 26 anos, eu chorava no avião, achando que nunca mais teria dinheiro para retornar a Londres. Um temor que se revelou infundado. Morei na cidade mais duas vezes, como correspondente e mestranda. Estive em Londres com os homens realmente importantes em minha vida. Entre eles meus dois filhos.
Londres muda, se moderniza, é mais cosmopolita que nunca. Tudo eu tolero nessa cidade, mesmo as cafonices, as obsessões e as coisas fora do lugar. Da mesma forma que aceitamos - e até cultivamos - detalhes fora do padrão no homem ou na mulher amada. Sejam as dobras na barriga ou as pintas no rosto, um nariz grande ou pequeno demais, um queixo meio torto. Londres é paixão eterna.
As fotos são da semana passada, quando a meteorologia previa chuva e deu sol - mas fazia frio mesmo sendo verão. O weather forecast não é mais o mesmo, mas os ônibus vermelhos ainda chegam nos horários marcados no ponto. A cerveja preta e stout Guinness, nos pubs tradicionais, ainda tem ali um sabor especial. Pelo menos para mim. Como somos tolos os apaixonados.


Um pub de mais de 200 anos (Foto: Ruth de Aquino)

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