quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Origem do mundo

Em “Genesis”, seu novo ensaio, o fotógrafo mineiro Sebastião Salgado retrata paisagens e comunidades pouco impactadas pela sociedade de consumo. Para preparar o trabalho, ele percorreu mais de 30 países durante oito anos

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Kênya Zanatta, de Paris

tedconference/Creative Commons

No princípio, o menino de olhos azuis vivia feliz entre árvores e animais. Então, ele cresceu e decidiu partir. Correu o mundo registrando dramas e terrores da humanidade. Um dia, não suportando o peso das misérias testemunhadas, o menino, agora homem, decidiu voltar ao paraíso da infância. Lá chegando, encontrou uma terra estéril. À imagem de Deus, decidiu recriar seu jardim. 


Essa história com ares de parábola poderia resumir a origem de Genesis, novo projeto do fotógrafo mineiro Sebastião Salgado. O resultado de oito anos de trabalho em mais de 30 países, distribuídos por África, Ásia, Américas, Oceania e Antártica, foi condensado em um livro que acaba de ser lançado pela editora Taschen e numa exposição, inaugurada em abril no Natural History Museum, em Londres, e que deve ficar de maio a agosto no Rio de Janeiro.



Em certo ponto da entrevista concedida na sede da Amazonas Images, sua agência fotográfica, à beira do canal Saint-Martin, em Paris, Salgado diz que não crê em Deus, mas não pôde resistir à simbologia contida na palavra “gênesis”. 



Da militância política, que o levou a deixar o Brasil no período da ditadura, às preocupações ambientalistas de hoje, o fotógrafo aponta que sua produção sempre espelhou suas convicções. Assim, seu primeiro grande projeto documental,Trabalhadores, realizado entre 1986 e 1992, enfocava um mundo do trabalho em plena mutação, tema central em sua breve carreira de economista – profissão que abandonou em 1973 para se dedicar à fotografia.”Com esse projeto, percebi uma reorganização da família humana”, diz ele, que fez dos movimentos populacionais o tema de seu ensaio posterior, Êxodos (1994-1999).



Em Ruanda, país africano que conhecia desde a época em que trabalhava como economista na Organização Internacional do Café, Salgado testemunhou a ferocidade do genocídio e o desespero da fuga. O homem por trás da câmera sucumbiu aos dramas que se desenrolaram diante de sua objetiva. Doente, decidiu voltar para sua cidade natal, Aimorés, em Minas Gerais, e tomar conta da fazenda da família. “Eu tinha perdido a fé na nossa espécie. Achava que a humanidade ia acabar. Estava no limite de uma depressão”, conta.



No Vale do Rio Doce, amargou outra decepção: “Achava que ia voltar para o paraíso, mas encontrei uma terra morta, exaurida”. Foi a mulher do fotógrafo, Lélia Wanick Salgado, que sugeriu promover o replantio da floresta. A partir disso, juntos, fundaram o Instituto Terra. A iniciativa em Aimorés foi tão bem-sucedida que o casal prepara um programa em parceria com o governo federal e a iniciativa privada para recuperar todas as nascentes do rio Doce.



Com verve de evangelizador, Sebastião Salgado dispara números e argumentos, explicando por que plantar árvores e preservar a mata nativa é essencial para o futuro do planeta. Desse entusiasmo pela causa ecológica surgiu a vontade de fotografar paisagens, animais e comunidades que ainda não sucumbiram ao fruto proibido do progresso e da sociedade de consumo. “Temos quase 46% do planeta em estado prístino. Genesis é uma amostra do que precisamos preservar no mundo. E o trabalho do Instituto Terra é uma amostra do que devemos fazer”, diz ele. 



A primeira viagem, em 2004, foi para as ilhas Galápagos – o lugar que inspirou a revolucionária teoria da evolução de Charles Darwin. Embora Salgado insista que seu trabalho nada teve de científico, as imagens deixam entrever uma preocupação em inventariar os elementos de um mundo original, dos adereços festivos das tribos de Papua Nova Guiné à infinita variedade de tons e texturas das extensões geladas da Antártida.



O uso do preto e branco, o domínio da técnica da contraluz e o rigor na composição, que em projetos anteriores lhe valeram a acusação de fazer arte com a miséria alheia, dão uma qualidade atemporal às fotografias de Genesis. Para Anne Biroleau, curadora de fotografia da Biblioteca Nacional da França, algumas dessas imagens transmitem “o sentimento de uma força cósmica que ultrapassa o humano e sobrevive a ele”. Ela argumenta que o apuro estético das imagens é uma maneira de “chamar a atenção para a verdadeira questão, ou seja, o posicionamento de Salgado sobre os temas que aborda”. “Ninguém criticou Goya por ele ter produzido gravuras belas e perfeitas sobre os desastres da guerra”, compara.



Genesis, o projeto, custou 1 milhão de euros por ano e foi financiado em parte por revistas e jornais que publicaram as reportagens de Salgado ao longo do trabalho, como a semanal francesa Paris Match e o diário inglês The Guardian. A outra parte dos custos foi coberta por patrocinadores, a exemplo da mineradora brasileira Vale do Rio Doce, além de duas fundações norte-americanas. Salgado frisa que suas fotos são apenas “a ponta do iceberg”. Por trás delas, houve um imenso esforço de preparação e edição dispendido por uma equipe de oito pessoas, que trabalha há anos na Amazonas Images. Ele faz questão de enfatizar também o papel crucial de sua mulher, responsável pelo design de seus livros e pela curadoria de suas exposições. Foi ela que comprou a primeira câmera fotográfica do casal, quando ainda era estudante de arquitetura.



De canoas a balões, passando por mulas, aviões e veículos militares, a equipe de Salgado teve que levar em conta situações extremas de clima e geografia para planejar cada uma das expedições. Um dos trajetos mais marcantes foi percorrido a pé, em 2008. “Uma verdadeira viagem pelo Velho Testamento”, define o fotógrafo. A travessia de 850 km nas montanhas do norte da Etiópia começou na cidade de Lalibela e terminou no parque natural Simien. “Fisicamente, não foi fácil, mas talvez tenha sido a viagem mais bonita que fiz na vida. É emocionante poder andar num caminho que o homem percorre há cinco mil anos.” A caminhada durou 55 dias, em uma região de desfiladeiros, passando por tribos cristãs e comunidades de judeus falasha.



Já acompanhar a transumância de seis mil renas em trenó ao lado dos nenets, comunidade nômade siberiana nos confins do Círculo Polar Ártico, colocou outros desafios: “Trabalhamos com uma temperatura de até 45º abaixo de zero. Passei 47 dias sem tomar banho. Eu morava com os nenets em tendas de cinco metros de altura, feitas com varas compridas e peles de rena”.



Em algumas ocasiões, o fotógrafo teve que viajar levando a própria comida e até painéis solares para produzir energia elétrica, além de uma vasta seleção de medicamentos –que no entanto não bastaram para todas as emergências. Picado por um inseto e com um início de gangrena em uma das pernas, o assistente que acompanhou Salgado em quase todas as viagens, Jacques Barthélemy, um ex-guia de montanhismo de 65 anos, precisou ser resgatado de avião em meio a uma floresta de Papua, província da Indonésia na parte ocidental da Nova Guiné. Apesar de todas as precauções, o próprio Salgado quase sucumbiu à malária falciparum, a forma mais perigosa da doença.



“Eles vivem como nós vivíamos há 50 mil anos. E as coisas essenciais para mim nessa minha comunidade urbana, consumidora e moderna são as mesmas coisas essenciais para eles”, afirma Salgado, sobre as comunidades isoladas que visitou. O fotógrafo cita o exemplo das complexas noções de balística que os índios Zo’è, da Amazônia, colocam em prática na hora de caçar com arco e flecha, similares às usadas pelos militares que ele pode observar quando fazia reportagens de guerra para as agências Gamma e Magnum. 



Para quem enfrentou os rigores de longas expedições em territórios inóspitos, é irônico que um de seus maiores traumas se relacione ao ambiente de assepsia dos aeroportos. Celebrado pelas proezas que realizou em película durante quase 40 anos, Sebastião Salgado foi levado a adotar a fotografia digital devido, sobretudo, ao aumento do nível de segurança nas viagens internacionais após os atentados de 11 de setembro de 2001. A cada aeroporto era uma luta para evitar que os filmes passassem pelas máquinas de raios X. “Uma vez, tudo bem. Mas depois de três ou quatro há uma perda da estrutura do grão, da gama de cinzas. Uma semana antes da volta, já ficava tenso porque corríamos o risco de perder tudo o que tínhamos feito”, conta. Em uma viagem de Sumatra a Paris, por exemplo, foram sete controles de segurança. O suficiente para convencer Salgado, que declara com uma ponta de orgulho não saber nem ligar um computador, a se equipar com quatro câmeras digitais Canon EOS 1D Mark III. 



Em algumas expedições de Genesis, o fotógrafo foi acompanhado por seu filho, Juliano, que agora prepara um documentário, Shade and Light, sobre a realização da obra, em colaboração com Wim Wenders. Amigo da família, o cineasta alemão fez uma série de entrevistas com Salgado e filmagens no Brasil. O longa deve estrear em setembro, quando Genesis chega a São Paulo.



Na tarde em que a reportagem de BRAVO! visitou a agência, a equipe se concentrava nos preparativos finais para a série de exposições, em meio a pacotes com livros e fotografias a serem expedidos. No subsolo, duas colaboradoras avaliavam uma impressão destinada à mostra no Rio de Janeiro e questionavam o fotógrafo sobre uma pequena imperfeição invisível aos olhos da repórter. 



Em meio às questões técnicas, Salgado parou um momento para contemplar a imagem grandiloquente de dois vulcões separados por uma nuvem e repetir quanto prazer tivera em fazer essas fotos. Voltar às origens do planeta parece ter sido seu último trabalho de grande alento: “Já tenho 69 anos e dificilmente vou conseguir fazer outro projeto longo como esse porque a demanda física é muito forte. Mas não vou parar de fotografar”.

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