sábado, 22 de dezembro de 2012

Os bastidores das relíquias garimpadas no lixo


Os bastidores da mais espetacular exposição de relíquias do lixo, em exposição no Centro do Rio de Janeiro




Quis o destino que um professor universitário apaixonado por reciclagem ajudasse a organizar o primeiro projeto de coleta seletiva do Brasil em 1985 no bairro de São Francisco, em Niterói (RJ). Foi ele quem primeiro reparou na enorme quantidade de livros descartados diariamente junto com os recicláveis. Era algo que o atormentava. Um desperdício doloroso de informação e cultura. E se houver algo valioso sendo descartado entre as 20 toneladas de recicláveis por mês trazidas pelos catadores? Para eliminar esse risco, ele orientou os responsáveis pela coleta a separarem dos recicláveis coletados nas ruas não apenas os livros, mas eventuais revistas, fotografias, medalhas, moedas antigas e tudo o mais que parecesse “coisa antiga”. A ideia do garimpo deu tão certo que, a partir dela, foi possível organizar o maior e mais importante acervo de relíquias a partir dos resíduos do Brasil.
O professor Emilio Eigenheer é um obstinado. Muito antes de o Brasil acordar para a urgência da coleta seletiva, ele já era uma autoridade no assunto. Lançou vários livros sobre a cultura dos resíduos, explicando como as civilizações do passado lidaram com seus medos, preconceitos e aversões ao que se convencionou chamar de lixo. Algo de que nós hoje ainda não nos livramos totalmente. O garimpo em Niterói resultou na doação de um acervo com 4 mil livros para a a biblioteca do Centro Centro de Memória Fluminense da Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói. Há ainda mil itens como revistas, jornais, fotos e mapas antigos catalogados e disponíveis para pesquisadores.

O projeto deu origem a confecção de um site onde mil livros didáticos ou de interesse acadêmico (todos separados em Niterói) foram disponibilizados para venda pelo preço mínimo de três reais. Só podem comprar os livros listados no site professores, alunos e funcionários da UFF ou do campus da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em São Gonçalo. A receita com a venda desses livros ajuda a custear as despesas do projeto. Outra importante fonte de renda é a venda direta de alguns livros para os “sebos”. Com sorte, chega-se a mil reais por mês. Não fosse o voluntarismo da equipe responsável, nada aconteceria.
A consagração veio agora com o interesse da Biblioteca Nacional do Rio (a mais importante instituição do gênero da América Latina). A exposição “Resíduos & Memória: o acervo raro recolhido pelo Programa de Coleta Seletiva do Bairro de São Francisco” ocupa uma ala inteira da Biblioteca. São 72 itens do acervo produzido com a supervisão do professor Emílio que agora ocupam o seu devido lugar. Entre as peças mais valiosas aparecem os primeiros selos postais do Brasil, da série “Olho de Boi” (um de 30 réis e outro de 60 réis), de 1843, sonho de consumo de qualquer filatelista. Uma coleção de moedas antigas de 1369 e 1706. Uma medalha italiana da Primeira Guerra Mundial (1918) e outra cunhada à época da celebração do primeiro centenário da Independência (1922). Cartões postais de 1907 a 1930. Cartões de visita do século dezenove que trazem as fotos estilizadas (com direito a curiosas poses) de seus donos.

O estado de conservação dos livros selecionados é impressionante. A obra mais antiga tem o pomposo título de “Historia Imperial e Cesarea”. Foi editado na Bélgica em 1578 e é a relíquia literária mais preciosa do acervo. Outros dois livros raros são a “História da Guerra Civil na França” (1660) e um Missário Romano (1820) que resistiram heroicamente às traças e ao abandono de seus donos. Há ainda um livro de 1850 que relata em detalhes a histórica festa em que 50 índios tupinambás atravessaram o Atlântico para saciar a curiosidade da corte francesa no século 16. Esta edição é ainda mais valiosa por trazer o carimbo de seu antigo dono, Salvador de Mendonça, um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras. Seu carimbo marca a contracapa da edição. Em “Cozinheiro Imperial” (1881), o visitante poderá ver o esmero das ilustrações que ensinam algumas das mais apreciadas receitas culinárias da corte no Brasil. Por fim, uma edição rara do livro “Nunca Mais…”, de Cecília Meirelles, lançado em 1923 e ilustrado por seu marido, Correia Dias.
Quem visita a exposição se delicia com o fato de que todo esse acervo precioso foi organizado a partir dos resíduos coletados por catadores de um bairro de Niterói.  O sonho do professor Emílio é ver outros municípios organizando garimpos semelhantes. É inimaginável a quantidade de relíquias que se perdem nos materiais separados para reciclagem, e principalmente naquilo que vai parar no lixo. Há verdadeiros tesouros submersos nas montanhas de resíduos que descartamos displicentemente todos os dias. Haja peneira!


André Trigueiro

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